Wednesday, March 23, 2011

O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (4)

Continuação da edição anterior
A mercadoria, essa base do capitalismo, tem muito menos importância do que a sua fantasmagoria financeira. Os neoliberais, em verdade, detestam o mercado – por isso o substituíram por meia dúzia de banqueiros
CARLOS LOPES
O capital especulativo não cria valor. Pelo contrário, ele extrai valor, ele sequestra, saqueia valor que é criado pelo capital produtivo. Pela sua própria natureza, a ação econômica do capital especulativo é uma pilhagem do valor criado na sociedade – tal como é, também, uma pilhagem da renda nacional.
Portanto, não é espantoso que a especulação tenha encontrado, depois de tantas vicissitudes, no neoliberalismo a sua ideologia. Trata-se, rigorosamente, de uma ideologia de ladrões – e não vai nesta última palavra, pelo menos por enquanto, nenhuma conotação moral. É apenas um fato.
Vários autores afirmaram que a regulação estabelecida, sobretudo pelo governo Roosevelt, após a eclosão em 1929 da chamada Grande Depressão, conteve por 40 anos a voracidade do sistema financeiro nos EUA. Essa legislação, cujos últimos vestígios foram irresponsavelmente eliminados no governo Clinton, permaneceu intocada por sucessivos governos, inclusive republicanos, tal era o trauma causado na sociedade norte-americana pela depressão. Até a Corte Suprema – o grande bastião dos monopólios financeiros na década de 30 – não se atreveu a derrubar essa legislação.
Ela era constituída basicamente por quatro pontos: 1) proibição dos bancos “nacionais” (isto é, não municipais) estabelecerem filiais, ou adquirirem outros bancos, além do limite de um Estado – ponto que era anterior a Roosevelt, criado pelo McFadden Act, de 1927; 2)separação entre bancos comerciais e “bancos de investimento” (isto é, especulativos); 3)estabelecimento de tetos para as taxas de juros; 4) separação entre bancos e companhias de seguro (cf. Thomas Philippon e Ariell Reshef, “Wages and Human Capital in the U.S. Financial Industry: 1909-2006”, National Bureau of Economic Research, 2009, pág. 33).
Em relação ao período anterior (1918-1929), período febril, de euforia maníaca e completa alucinação em Wall Street, não há dúvida que essa legislação fez recuar o setor meramente bancário.
No entanto, não é justificada a visão, exposta por alguns norte-americanos, de que o período em que vigorou essa regulação foi uma época idílica do capitalismo americano. Especialmente Paul Krugman deu forma a essa ilusão, após a eclosão da atual crise, referindo-se à uma supostamente maravilhosa “era dos bancos tediosos” (Krugman, “Making Banking Boring”, TNYT, 09/04/2009).
O capitalismo financeiro – o capitalismo monopolista mais acabado – não é um regime onde convivem separadamente os bancos e as empresas ditas não-financeiras. Pelo contrário, ele é a fusão de facto – e, às vezes, de jure, isto é, como propriedade legal - dos bancos com os demais monopólios, sob hegemonia dos primeiros. A especulação financeira não deixou de existir nos EUA entre a década de 30 e a de 70 do século passado. O que aconteceu foi a transferência de uma parte ponderável dela para as multinacionais supostamente não-financeiras (ver, p. ex., John Bellamy Foster e Hannah Holleman, “The Financial Power Elite”, Monthly Review, maio/2010).
Porém, mais importante do que isso, a legislação norte-americana tinha validade, naturalmente, sobre o território norte-americano. Não impedia os grandes bancos dos EUA de pendurarem outros países – como o Brasil – em empréstimos. Grande parte da liquidez desses bancos, consequência da maré de superlucros dos monopólios norte-americanos, foi dirigida para esses empréstimos externos. Obviamente, esse não é um problema da legislação norte-americana, mas uma consequência da situação política – o estabelecimento de ditaduras pró-americanas no chamado 3º Mundo – que permitiu o endividamento desses países. Mas essa parte do problema os nossos leitores conhecem bem.
Assim, iniciada a recessão de 1979-1982 nos EUA, a elevação, pelo Fed, sob administração de Paul Volcker, dos juros norte-americanos - de 10,9% (1978), eles foram sucessivamente a 13,3% (1979), 15,5% (1980), 19,6% (1981) e 19,5% (1982) – teve o efeito, além de quebrar os endividados países da periferia, de, ao drenar recursos do mundo todo para os bancos norte-americanos, colocá-los, mesmo em vigência da regulação, na melhor posição dentro da economia do país desde a década de 20. A tibieza dos democratas completou o serviço: a eleição de Reagan.
Evidentemente, com as corporações que lhes estavam ligadas, esses grandes bancos nunca desistiram de derrubar a regulação. Mas isso era tão impopular – inclusive nos meios políticos – que essa campanha permaneceu nas sombras até o final da década de 70. Foi então que os bancos precisaram de uma ideologia que “justificasse” um atentado contra o bom senso das pessoas. Esse é o papel instrumental, ou funcional, do neoliberalismo.
CONTAS
Essa passagem de culto ressentido de alguns ressentidos à ideologia oficial dos bancos, negocistas, mediocridades políticas e aventureiros acadêmicos, portanto, está ligada diretamente às dificuldades em que se meteram, ao engessar a economia, os monopólios e cartéis dos EUA.
No início da década de 90, Cláudio Campos fez uma observação aguda: a economia norte-americana passara a ser, principalmente, importadora de capital. O comentário foi feito quando o autor do presente artigo, sem dar-se conta das modificações ocorridas em quase 80 anos, publicou no HP o conhecido texto de Lenin, escrito em 1916, sobre a exportação de capital, que começa com as frases: “O que caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital” (cf. Lenin, “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, Ob. Esc. em seis t., T. 2, Ed. Progresso, Moscou, 1984, pág. 342).
Não era fácil perceber tal modificação – a julgar por alguns, continua não sendo fácil. Evidentemente, os monopólios dos EUA não deixaram de exportar capital – embora, nos últimos tempos, em lugar de capital, têm exportado quase que tão somente dólares sem lastro, o que é, a rigor, uma ficção monetária.
O fato é que a economia do principal país do centro do sistema não tem hoje nem a característica do “velho capitalismo” nem a do “novo”: é, sobretudo, uma economia importadora - tanto de mercadorias quanto de capital. Melhor epitáfio econômico para esse sistema não poderia existir.
Resumimos, na tabela desta página, alguns dados do balanço de pagamentos dos EUA, atualizados no último dia 16 pelo Bureau of Economic Analysis (BEA) do Departamento de Comércio norte-americano (todos os dados já com ajuste sazonal).
As entradas de rendas de todo o mundo para os EUA - fundamentalmente, lucros extraídos em outros países -, em termos líquidos, aumentaram de US$ 51,624 bilhões, na década de 60, para US$ 828,011 bilhões de 2001 a 2010. Quanto aos serviços (por onde são remetidos para os EUA uma parte adicional de lucros), de um déficit de US$ -7,930 bilhões (1961-1970) passaram, de 2001 a 2010, a um superávit de US$ 906,224 bilhões.
Mas isso é em termos líquidos – descontando o que saiu dos EUA em “rendas” e “serviços”. Como, no caso dos EUA, essas contas são distorcidas por operações intrafirma das multinacionais, vejamos as entradas brutas. O total do que entrou nos EUA em rendas de todo o mundo aumentou de US$ 72,460 bilhões (1961-1970) para US$ 5 trilhões, 338 bilhões e 173 milhões (2001-2010). Nos serviços, o aumento foi de US$ 96,425 bilhões (1961-1970) para US$ 4 trilhões, 45 bilhões e 468 milhões (2001-2010).
Acrescentamos na tabela uma coluna com o fluxo de “investimento direto” norte-americano para comprar empresas (ou, às vezes, instalar fábricas) em outros países. Os neoliberais detestam essas comparações. Dizem eles, como se isso tivesse alguma coisa a ver com o assunto, que o “investimento direto” e as “rendas” (e “serviços”) não pertencem à mesma conta do balanço de pagamentos. Seria bom eles explicarem isso a certas autoridades econômicas que cobrem rombos causados pela remessa de “rendas” e “serviços”, precisamente, com o “investimento direto estrangeiro” (IDE).
Mas eles têm razão em detestar tal comparação. Se houvesse neles alguma seriedade, os idólatras do IDE teriam de explicar seus benefícios diante do fato de que o fluxo de “investimento direto” dos EUA para outros países aumentou de US$ 46,826 bilhões (1961-1970) para US$ 2 trilhões, 423 bilhões e 188 milhões (2001-2010), enquanto, no mesmo período, o fluxo de renda de outros países para os EUA aumentava de US$ 72,460 bilhões para US$ 4 trilhões, 45 bilhões e 468 milhões – e nem somamos ainda os serviços: se o fizermos, veremos que o aumento das remessas em rendas e serviços de outros países paraos EUA passou de US$ 168,885 bilhões para US$ 9 trilhões, 383 bilhões e 641 milhões.
Apesar dos números gigantescos, essa entrada nos EUA de recursos vindos de outros países está subestimada. Não estão computadas as rendas que vieram dos “derivativos”, porque o órgão do governo americano que cuida dessas estatísticas não tem a menor ideia sobre isso - não há registros oficiais.
QUEDA
Desde meados da década de 50, os EUA vinham manipulando o dólar para beneficiar os seus monopólios. Apesar disso, dos países centrais (com exceção da Inglaterra), os EUA, de 1955 até a década de 70, foi o que apresentou menor crescimento. Sua participação no produto mundial caiu de 36% (1955) para 30% (1971). Entre os seis países mais industrializados, suas exportações desceram, entre 1955 e 1970, de 25% para 18,5% (cf. Ricardo Parboni, “The dollar weapon: from Nixon to Reagan”, NLR, 158, jul-ag/1986).
Porém, mais importante para o nosso tema, é a queda da taxa de lucro.
Parece haver um razoável consenso de que a taxa de lucro média das empresas não-financeiras dos EUA caiu cerca de 25% entre 1968 e 1982 (cf. Chris Harman, “Crise et taux de profit”, Inprecor, nº 556-557, jan./2010).
Porém, esse período é demasiado extenso – e o número carece de precisão. Em um trabalho bastante interessante, dois economistas franceses chegaram ao seguinte resultado para a taxa de lucro média das empresas não-financeiras dos EUA (incluídas 81,6% das empresas não-financeiras; foram excluídas as “altamente capital intensive”, aquelas em que os investimentos em capital fixo são muito maiores do que qualquer outro item): a) 1950-1959: 41%; b) 1960-1969: 38%; 1970-1979: 27% (cf. Gérard Duménil e Dominique Lévy,“The Profit Rate: Where and how much did it fall? Did it Recover? (USA 1948-2000)”, 2002, RRPE, Vol. 34, pp. 437-461; usando outro método, e dependendo da hipótese de tempo de uso das máquinas, chegou-se a outros números, mas o importante é que a tendência é a mesma – cf. Arnaud Sylvain, “Rentabilité et profitabilité du capital: le cas de six pays industrialisés”, Économie et Statistique n° 341-342, 2001).
Qual a importância dessa queda na taxa de lucro para o nosso assunto? A importância é que os monopólios, para contrarrestar essa queda, fazem, se puderem, sempre duas coisas: desviam dinheiro da produção para obter ganhos na especulação financeira e reduzem os salários. Ambas já eram mantras do neoliberalismo desde seu surgimento.
FASE
Com uma economia estagnada por mastodônticos cartéis, Nixon, ao romper a relação entre o dólar e o ouro, engendrou a condição para que a até então insignificante maçonaria neoliberal se cevasse. No entanto, os monopólios financeiros não adotaram o neoliberalismo porque chegaram à conclusão de que se tratava de uma doutrina muito lúcida. Pelo contrário, durante mais de três décadas os neoliberais se ofereceram aos bancos e especuladores dos países centrais - e foram seguidamente esnobados, até que a situação econômica tornou-os úteis como criados ideológicos.
Quando Nixon passou por cima dos acordos de Bretton Woods, o establishment dos EUA – inclusive a cúpula dos bancos - nada tinha de neoliberal. Como observa Morris, que foi executivo do Chase Manhattan Bank (e um dos que esboçaram os primeiros fundos de hedge), “na economia, Nixon foi keynesiano em todos os sentidos (…). Membros de seu gabinete tidos por conservadores tinham basicamente as mesmas visões, entre eles John Connelly, secretário do Tesouro e ex-advogado de empresas, e George Romney, secretário da Habitação e ex-presidente da American Motors. Romney declarou a certa altura que a economia dos Estados Unidos ‘deixara de se basear no princípio da livre concorrência empresarial’. Até Burns, um símbolo do conservadorismo, justificou o recurso ao controle de salários e preços declarando ao Congresso que ‘as regras da economia não estão funcionando exatamente da maneira como funcionavam antes’” (Charles R. Morris, “O Crash De 2008”, trad. Otacilio Nunes, Aracati, 2009, pág. 58).
O último citado, Arthur Burns, era o presidente do banco central dos EUA (Fed) – que é, desde sua fundação, em 1913, uma instituição privada, formada pelos grandes bancos norte-americanos.
No entanto, depois do rompimento da relação fixa entre o dólar e o ouro forjou-se uma economia de papel que permanentemente saqueia o setor produtivo. Tudo - inclusive, como se viu recentemente, os alimentos - têm importância apenas como “ativos financeiros”, isto é, transformados em papéis para apostas no “mercado-futuro”. A mercadoria, essa base do capitalismo, tem muito menos importância do que a sua fantasmagoria financeira. Os neoliberais, em verdade, detestam o mercado – por isso o substituíram por meia dúzia de banqueiros.
Tal monstruosidade fez com que alguns autores postulassem que estaríamos vivendo uma nova fase do capitalismo, que o economista norte-americano Paul Krugman denominou “financeirização”.
Já mencionamos que há características específicas da época atual. Mas não há diferença de qualidade em relação ao que já fora constatado no início do século XX. Apenas, a degeneração financeira chegou a limites extremos. Em 1916, o mais importante dos autores que estudou o problema ressaltava: “O rendimento dos rentiers é cinco vezes maior que o rendimento do comércio externo do país mais ‘comercial’ do mundo! Eis a essência do imperialismo e do parasitismo imperialista” (Lenin, op. cit., pág.379, grifo do autor).
Hoje, quando, segundo dados do BIS e da OMC, os “derivativos” equivalem a 23 vezes a corrente de comércio mundial (isto é, em dólares, 23 vezes a soma das exportações com as importações mundiais), o exemplo aludido por Lenin parece muito modesto. Ainda mais quando o número do ultimo boletim do BIS sobre os “derivativos” (US$ 582,655 trilhões) é uma estimativa que parece subestimada. E nem contabilizamos os títulos (“securities”) da dívida privada e pública de todos os países.

Apesar da monstruosidade a que chegou hoje a especulação, a diferença em relação ao capitalismo monopolista anterior a 1971 é, fundamentalmente, quantitativa – isto é, no grau de apodrecimento do sistema. Quanto ao fenômeno que todos esses números expressam, não há diferença qualitativa que nos permita falar em uma nova fase do capitalismo nos países centrais. 
No mesmo livro que, por último, citamos, há uma descrição vívida do fundo do problema. Resumidamente:

“... os bancos convertem-se, de modestos intermediários que eram antes, em monopolistas onipotentes, que dispõem de quase todo o capital-dinheiro (…), bem como da maior parte dos meios de produção e das fontes de matérias-primas de um ou de muitos países. (…) Quanto à estreita relação existente entre os bancos e a indústria, é precisamente nesta esfera que se manifesta, talvez com mais evidência do que em qualquer outro lado, o novo papel dos bancos. (…) Simultaneamente, desenvolve-se, por assim dizer, a união pessoal dos bancos com as maiores empresas industriais e comerciais, a fusão de uns com as outras mediante a posse das ações, mediante a participação dos diretores dos bancos nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e comerciais, e vice-versa. O século XX assinala, pois, o ponto de viragem (…) da dominação do capital em geral para a dominação do capital financeiro(Lenin, op. cit., págs. 313-328, grifos nossos).



O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (5)
Continuação da edição anterior
O “mercado financeiro” é um “mercado” de dívidas infinitas, que crescem em espiral – ou exponencialmente – supondo-se uma eterna “valorização”, ao mesmo tempo em que saqueia o único setor que realmente cria valor: o produtivo
CARLOS LOPES
Alguns economistas descrevem a situação depois de 1971, quando o sistema financeiro internacional deixou de ter lastro no ouro, como um “sistema financeirofiduciário”. Achamos o termo inadequado. A palavra “fiduciário” descreve operações que são baseadas na confiança entre as partes – ainda que uma ou algumas das partes possa não ter alternativa senão “confiar” na mais forte financeiramente.

Podemos formular a questão de modo mais simples – ou, se não, pelo menos mais direto: a relação fixa do dólar com o ouro constituía-se num limite à especulação. Essa relação expressava – e era – um compromisso dos EUA com os outros países capitalistas em torno da preservação de um sistema financeiro comum. Em 1971, os EUA romperam esse compromisso – pode-se dizer: declararam guerra financeira aos outros participantes do sistema (isto é, todos os outros países capitalistas), aproveitando-se da vantagem (e que vantagem!) de ter o monopólio de emissão da moeda do sistema.

Se os EUA quebraram o compromisso que era a própria base do sistema, o que, então, mantém ainda esse sistema – mesmo tendo como lastro, para usar a expressão de De Gaulle, “papel pintado”? Como pôde (e pode) continuar existindo um sistema que é uma agressão aberta a todos os seus participantes, com exceção de um (nas palavras do atual presidente do banco central dos EUA, Ben Bernanke, “… o governo dos EUA tem uma tecnologia chamada máquina de impressão - ou, hoje, o seu equivalente eletrônico -, que permite a ele produzir quantos dólares quiser, essencialmente sem nenhum custo” - isto é, com os outros países arcando com esse custo)?

Esse sistema de guerra financeira aberta é mantido pela guerra propriamente dita (ou ameaça de guerra, isto é, por uma guerra oculta). O sistema financeiro atual, com o monopólio de um país sobre a emissão de sua moeda sem lastro, só existe devido ao poder militar dos EUA – e é impossível subestimar o fato de que os EUA ocupam militarmente aqueles países que poderiam ser os seus principais rivais no campo imperialista, a Alemanha e o Japão. Um economista norte-americano usou uma frase de efeito para sintetizar essa situação: “Os EUA são hoje uma superpotência militar, mas um anão econômico” (F. William Engdahl, “The Big Black Hole in the Dollar’s Future”, SCF, dez./2009).

Não vai nisso uma subestimação do poder financeiro e econômico que os EUA ainda conservam no mundo. Engdahl refere-se à economia nacional dos EUA, que, evidentemente, não deixou de existir – mas que entrou em liquidação, com seus monopólios, em busca da maximização dos lucros, transferindo unidades produtivas para outros países. Estavam, assim, liquidando a própria base de operações a partir da qual expandiram-se pelo mundo.

O chamado “pós-industrialismo”, sub-ideologia neoliberal segundo a qual os EUA deveriam ser um “país de serviços”, explorando os baixos salários industriais de outros países, significou a desindustrialização parcial e a redução violenta dos salários também dentro do país (ver Ian Fletcher, “The Death of the Postindustrial Dream”, Huffington Post, julho/2010).

Foi isso o que, a princípio, os neoliberais propagandearam sob o rótulo de “globalização” - cuja única face verdadeira, inextricavelmente ligada a esse processo, foi a “globalização” financeira, predatória e rapinante.

Porém, os interesses das multinacionais não são necessariamente (em verdade, rarissimamente são) os interesses de uma economia nacional, mesmo aqueles das economias onde têm a sua matriz. E as economias nacionais não desapareceram só porque os neoliberais propagandeavam que elas tinham deixado de existir - inclusive, a economia nacional dos EUA.

Por consequência, como sustentar uma economia nacional, se os empregos industriais estavam indo para fora do país, os salários estavam em queda e os EUA passaram a ser importadores dos produtos de suas próprias empresas, além dos produtos das empresas de outros países?

Em outras palavras: quem ia comprar mercadorias para fazer a economia nacional funcionar? Onde a população iria arrumar dinheiro para fazer suas compras – numa economia onde 70% do PIB, pelo menos, é oriundo de gastos com o consumo pessoal e que, do ponto de vista mundial, representa 50% do consumo de produtos industriais e agrícolas?


ESPECULAÇÃO


Para isso o neoliberalismo teve a mesma resposta de sempre, ou, melhor, a mesma falta de resposta: a especulação. Aumente-se o crédito a limites insustentáveis; se a população não tem dinheiro para comprar as mercadorias dos monopólios multinacionais – sejam os importados, sejam os ainda fabricados internamente – endivide-se a população, estimulando-a, inclusive, a gastos completamente supérfluos (era isso o que se chamou “consumismo”).

Assim, os empréstimos, as hipotecas (e não somente sobre moradias, mas sobre qualquer coisa que pudesse ser garantia de empréstimos) transformaram-se na mais florescente indústria dos EUA, precisamente devido a um arrocho salarial tremendo.
Para completar, ao mesmo tempo em que os ricos eram aliviados dos impostos, os pobres tinham que sustentar a máquina bélica e burocrática.

O economista norte-americano Michael Hudson chamou isso de “suicídio pós-industrial”. Com efeito, “qualquer um dificilmente pode chegar à conclusão de que o problema enfrentado pelo emprego industrial dos EUA é que os assalariados precisam ganhar o suficiente para pagar pelos custos de moradia mais caros do mundo (a FDIC está tentando limitar as hipotecas a 32% do orçamento de quem toma emprestado), pelo serviço de saúde e pela previdência mais caros do mundo (retenção de 12,4% de impostos para a seguridade), pelos altos níveis de endividamento pessoal nos bancos e nas vorazes companhias de cartão de crédito (cerca de 15%) e pelos mais altos índices de transferência da propriedade e maior parcela de riqueza extraída do produto do trabalho e dos bens de consumo (outros 15% ou algo assim). O objetivo dos banqueiros é calcular exatamente quanto seus clientes podem pagar ao setor financeiro-hipotecário - definindo esse valor como tudo que eles puderem dispor além e acima dos custos de subsistência básica”(Michael Hudson, “Krugman, China and the role of finance”, nov./2010).

Entretanto, como não ver que, mais cedo do que tarde, esse endividamento crescente e estúpido iria levar à dinamitação da economia? Qual a solução dos neoliberais para tornar “sustentável” essa dívida colossal?

Ora, essencialmente, a mesma já referida: que se emitam papéis em cima dessa dívida, e, sobre esses papéis, outros papéis, e assim até o Armagedon; que se vendam esses papéis de papéis aos otários, de preferência com nomes incompreensíveis até para os próprios banqueiros e especuladores - “credit default swap”, “collateralized debt obligation”, etc., etc. (James Cayne, o capo do Bear Stearns, e George Soros confessaram sua ignorância sobre o que é um “credit default swap” - mas esse deve ser o lado normal deles; o anormal é que vendiam esses papéis aos bilhões).

Assim, com a compra e venda eterna dessa papelada, ancorada na propriedade alheia (a rigor, na capacidade dos proprietários de casas, e outros bens, de pagar adívida provocada pela queda na sua renda e induzida pelas miragens prometidas por fundos e bancos), todos seriam felizes para sempre sem precisar da indústria, esse trambolho que só serve para atrapalhar a especulação.

Se o leitor achou isso parecido com uma “pirâmide”, acertou. O “mercado financeiro” é um “mercado” de dívidas infinitas, que crescem em espiral – ou exponencialmente – supondo-se uma eterna “valorização”, ao mesmo tempo em que saqueia o único setor que realmente cria valor: o setor produtivo. O neoliberalismo é a idolatria da “pirâmide”. O sr. Madoff não fez nada que os outros – à solta e mandando nos EUA – não tivessem feito e continuem fazendo. Mas, quando chega a crise, é urgente caçar um bode expiatório...

O desabamento em dois tempos dessa papelada piramidal - em março (falência do Bear Stearns) e em setembro de 2008 (falência do Lehman Brothers) - não fez com que os vigaristas desistissem. Aliás, nisso estamos de pleno acordo com o ex-vice-presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz: “Ou mandamos os banqueiros para a prisão, ou a economia não vai se recuperar”.

Esse desabamento também não fez com que o sr. Mantega deixasse de falar em um “mercado de debêntures”, isto é, um “mercado” de dívidas com os bancos privados, para financiar as empresas, no lugar do BNDES...


ESTABILIDADE


Tentamos dar uma ordem mais ou menos lógica a essa descrição, para torná-la compreensível ao leitor. Apenas, advertimos que nem esta pequena dose de lógica existiu, nem foi esta a ordem cronológica: os “derivativos” não surgiram para sustentar a dívida do consumidor norte-americano. Mais exato seria o contrário: o endividamento dos norte-americanos foi uma consequência não somente da redução no salário real, como também da especulação desenfreada do muito mal chamado “mercado financeiro”.

Naturalmente, para um mundo delirante como esse, a ideologia adequada teria que ser um delírio.

Mas como isso foi imposto aos países dependentes?

Nas condições da década de 90, antes de tudo, na falta de um poder que se contrapusesse ao do imperialismo norte-americano e seus satélites, pelo terrorismo. As ilusões só puderam prosperar (?!) porque foram absorvidas por gente economicamente – e, claro, ideológica e psicologicamente – aterrorizada. Nesse sentido, Pinochet não foi uma exceção, mas um pioneiro.

Os outros países dependentes, antes, foram quebrados pelos juros da dívida na década de 80 – e tratou-se a inflação e a estagnação desses países como se fossem responsabilidade exclusiva deles, e não, principalmente, da feroz espoliação que sofreram.

Daí a propaganda da “estabilidade” como se ela fosse um valor em si. Certamente, se perguntarmos sobre a estabilidade, todos, exceto os malucos, serão a favor, mas isso porque associaram a palavra a um determinado conteúdo: a estabilidade do bem estar, e, até mesmo, à estabilidade do crescimento. Não passará pela cabeça de quase ninguém que exista quem propugne pela estabilidade da miséria, da estagnação e do roubo.

Fora essa associação positiva, a “estabilidade” é uma noção muito boa para a astronomia (“o planeta Marte apresenta estabilidade, o que é um forte indício da ausência de vida”), mas especialmente idiota quando aplicada à economia, ou seja, ao esforço coletivo dos seres humanos para produzir.

No entanto, vemos acadêmicos e autoridades, sem se preocuparem em entender o que estão dizendo - e menos ainda em fazer os outros entenderem - falar em “estabilidade monetária”, “estabilidade macroeconômica”, “estabilidade financeira” e até em “estabilidade jurídica” (como se as leis e contratos não tivessem de ser adaptados quando há uma mudança na realidade - ou quando prejudicam a coletividade; mas essa “estabilidade” jurídica só vale para os monopólios, jamais quando o beneficiado é o povo).

Do ponto de vista dos neoliberais é fácil saber o que eles querem dizer com “estabilidade”: que o estado sublime da economia real é tornar “estável” a especulação, servindo como doadora em uma transfusão, permanente e perpétua, para bancos e assemelhados; e que não pode haver, jamais, qualquer mudança, pois isso perturbaria a “estabilidade”. Filosoficamente, são a favor da “estabilidade” porque senão a “estabilidade” seria perturbada...

Associada com essa propaganda da “estabilidade” tumular, está a de que não progredimos a partir de 1980 porque fomos “irresponsáveis” e não fizemos a “lição de casa”, ou seja, não entregamos a economia a um grupelho monopolista. O fato de que os juros do sr. Paul Volcker, na presidência do banco central dos EUA, quebraram o país, não é uma questão “válida”.

O mais interessante, e mais sintomático, é que trata-se de uma “estabilidade” muito peculiar, que significa, sempre, a iminência de uma catástrofe. Tudo é sempre justificado pelo terror a essa catástrofe – aumentos de juros, cacetadas sobre o crescimento, arrocho salarial, isenções fiscais para especuladores estrangeiros, câmbios que só flutuam para beneficiar tubarões externos, leis irresponsáveis que destroem Estados e municípios por restrições orçamentárias, leis de falência que colocam os trabalhadores com direitos abaixo dos banqueiros, superávits “primários” que não passam de sequestro do dinheiro público para transferi-lo aos bancos, atentados aos direitos previdenciários ou trabalhistas, privatização de empresas públicas lucrativas, desnacionalização da economia, e até leis de despejo sumário para proteger especuladores imobiliários, ao invés dos inquilinos.

Tudo se justifica pela iminência da catástrofe. Não é uma estranha “estabilidade”, leitor, essa que demanda sempre novas e mais custosas concessões da população, do Estado e do Tesouro para evitar a catástrofe?

Pois assim funciona o terrorismo da inflação e sua consequência, o sistema de “metas de inflação” (inflation targeting – tudo nessa miséria é tradução, de má qualidade, do inglês).


INFLAÇÃO


No Brasil, a aceleração da inflação a partir da segunda metade da década de 50 foi uma consequência da monopolização da economia, que avançou com a entrada e/ou expansão das multinacionais, depois que a Instrução 113, emitida durante a gestão de Eugênio Gudin no Ministério da Fazenda e Octávio Gouveia de Bulhões na Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), permitiu a entrada no país de máquinas e equipamentos usados sem cobertura cambial.

Na época, até 1964, não havia condição política de estabelecer no país um arrocho salarial. Assim, os monopólios privados recorreram ao aumento de preços – que equivalia a uma expropriação do salário, isto é, a uma queda no salário real. Por isso, falava-se na inflação como expressão de um “conflito distributivo” na economia, ou seja, a uma luta por uma maior parcela da renda nacional entre esses monopólios e os trabalhadores, que, com o salário crescentemente capturado pelos aumentos de preços, recorriam a mobilizações, inclusive greves, para recuperar o seu poder aquisitivo.

Naquele momento, havia um outro fator a impulsionar os preços: uma estrutura agrária atrasada que puxava para cima o custo de vida. Daí, entre outras razões, a ênfase do governo João Goulart na reforma agrária.

Depois do golpe de Estado de 1964, a política de arrocho salarial e contenção geral do consumo “contribuía ao combate à inflação não porque contivesse a demanda (…) mas, ao contrário, porque permitia que os monopólios aumentassem seus lucros sem ter que entrar em uma luta a morte com os trabalhadores; agora, já não necessitariam tentar enganar a estes com aumentos nominais de salários, aos quais compensavam com novos aumentos de preços (...). Por isso, a contenção salarial não era um mero instrumento de combate à inflação, mas uma exigência fundamental dos monopólios estrangeiros (...). Além disso, apresentava-se como uma condição estrutural do novo padrão de reprodução do capital” (Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, Alfa-Omega, 2004, pág. 113).

Quando a inflação acelerou outra vez, de 1974 em diante, nitidamente o problema estava, novamente, e de maneira mais evidente, na ação dos monopólios externos.

Contra eles, as medidas do antigo monetarismo – a contenção pura e simples da demanda – eram inúteis, pois a reação dos monopólios à queda nas vendas era, precisamente, a de usar seu domínio sobre o mercado para aumentar os preços, portanto, aumentar a inflação. É isso o que explica a aceleração inflacionária que vai da segunda metade da década de 70 até a década de 90.

Naturalmente, existe uma solução racional para esse problema: aumentar os investimentos do setor não-monopolista, isto é, do setor nacional, privado e estatal, da economia para aumentar sua capacidade produtiva e sua parcela na produção e no mercado, vis-à-vis os monopólios. Em síntese, isso significa combater a inflação através do crescimento. 

Mas, nesse momento, o país foi estrangulado pela crise da dívida externa, provocada pelo aumento nos juros dos EUA.
Também para isso havia uma solução racional: reagir a uma medida unilateral dos EUA, decretando a moratória da dívida externa e usar os imensos recursos imobilizados – a rigor, desperdiçados – no pagamento de juros para financiar os investimentos, a expansão da economia com base no setor não-monopolista, nacional.

Como os leitores sabem, isso não foi feito. Daí, amargamos taxas crescentes de inflação que entraram pela década de 90. Quando não se enfrentam os problemas, arca-se com as consequências. Foi assim, ou de modo semelhante, que a inflação transformou-se num espantalho para impor os maiores absurdos nos países em que a equipe econômica foi possuída pelo neoliberalismo. Em alguns deles - poucos, aliás - instituiu-se o já citado sistema de “metas de inflação”.

Mas deixemos essa questão para a próxima edição, onde, esperamos, concluiremos este arrazoado que já está demasiado longo...

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