Saturday, October 25, 2008

Os censos da URSS e a fraude do “holocausto ucraniano”

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Na falta de fatos e de lógica, a partir de 1983, a manipulação de números dos censos soviéticos passou a ser o principal método dos mercenários, fascistas e outros desclassificados para tentarem colocar em pé a fraude do “holocausto ucraniano”

A fraude do “holocausto ucraniano” não é afirmar que houve fome na Ucrânia em 1932-1933. Nas localidades em que, durante a coletivização da agricultura, os “kulaks” (os camponeses ricos) conseguiram destruir plantações e rebanhos, é óbvio que houve dificuldades – e as próprias fontes soviéticas da época relatam escassez localizada de alimentos devido à sabotagem “kulak”. Lembremos que no início da coletivização havia, na URSS, 10 milhões de “kulaks” (para uma população camponesa total de 120 milhões de pessoas) - e 1 milhão e 800 mil deles, por sabotagem, foram condenados a mudar de localidade.

A fabricação do “holocausto ucraniano” não é, portanto, a existência de fome em tal ou qual lugar, mas a de que Stalin, deliberadamente, provocou uma fome artificial para eliminar o povo ucraniano. Por que Stalin – que nem russo era – queria eliminar o povo ucraniano, estando a URSS à beira da invasão e da guerra, previstas por ele desde 1930, é coisa que os inventores dessa infâmia não se deram, até hoje, ao trabalho de explicar. Evidentemente, projetava-se sobre Stalin o plano de limpeza étnica de Hitler, anunciado por este em 1926, com menção explícita à Ucrânia, no “Mein Kampf” – e parcialmente executado durante a II Guerra Mundial, com ajuda dos traidores ucranianos, quando o país foi ocupado pelos alemães.

O MÉTODO

Na falta de fatos e de lógica, a partir de 1983, a manipulação de números dos censos soviéticos passou a ser o principal método dos mercenários, fascistas e outros desclassificados para tentarem colocar em pé a fraude do “holocausto ucraniano”. O método é simples: atribui-se uma determinada taxa de natalidade à Ucrânia soviética e comparam-se os dois censos nacionais soviéticos anteriores à II Guerra (1926 e 1939), subtraindo-se a população real de 1939 da que existiria se a taxa de natalidade fosse verdadeira – e não morresse ninguém. A diferença são os “mortos de fome” durante o inventado “holocausto ucraniano”.

O pioneiro do método foi Walter Dushnyck, um colaborador dos nazistas e terrorista da “Organização Militar Ucraniana” que refugiou-se nos EUA após a II Guerra (cf. seu obituário em “Ukrainian Weekly”, cit. por Douglas Tottle, “Fraud, Famine and Fascism”, Progress Books, Toronto, 1987, pág. 67).

Dushnyck é autor de “50 Years Ago: The Famine Holocaust in Ukraine” (New York, 1983), um panfleto repleto de referências nazistas – inclusive a capa (uma caveira branca sobre uma foice e um martelo vermelhos: um dos temas favoritos dos posters hitleristas), as fotos da “fome ucraniana” publicadas originalmente no jornal de Hitler, o “Völkischer Beobachter” (e nos de seu apoiador americano, William Randolph Hearst), e as citações de livros nazistas sobre o mesmo assunto.

Depois da incursão de Dushnyck pela alucinose estatística, o método se tornou generalizado entre os anti-comunistas mais inescrupulosos: Robert Conquest, que, para escrever seu livro sobre o assunto, teve como ajudante James Mace, um dos seguidores do método estatístico de Dushnyck, o adotou, assim como o debilóide Nicolas Werth, organizador do infame “livro negro do comunismo”.

[Nicolas Werth, pela mediocridade, merece uma observação à parte: trata-se do filho de Alexander Werth, correspondente da BBC na URSS durante a II Guerra, autor de livros muito valiosos, em especial “Russia at War” e “Moscow 41”, e um caso raro de anti-comunista: aquele que luta para que sua objetividade seja pouco afetada por seus preconceitos, como se pode ver por suas reportagens sobre as batalhas de Leningrado e Stalingrado; sua confirmação, através de fontes não soviéticas, do complô pró-nazista de Tukachevsky; sua denúncia das atrocidades nazistas na URSS e no Leste europeu; e a desmoralização a que submeteu os “números de vítimas” que Soljenitsyn atribuiu a Stalin. Alexander Werth era russo de nascimento, tendo emigrado após a Revolução, aos 16 anos, acompanhando a família, para a Inglaterra. Infelizmente, o filho puxou apenas ao anti-comunismo do pai, sem qualquer das suas qualidades].

Voltando ao método de Dushnyck, ele pode ser avaliado pelo seguinte trecho de seu livro: “tomando os dados do censo de 1926 e os do censo de 1939 e a média de aumento [da população] antes da coletivização (2.36% ao ano), podemos calcular que a Ucrânia perdeu 7 milhões e 500 mil pessoas entre os dois censos”. Logo, esses seriam os mortos de fome entre 1932 e 1933...

Dushnyck, portanto, pressupõe que a taxa de natalidade permaneceu constante durante os 13 anos em que na URSS ocorreu a mais extraordinária transformação da História – com a industrialização pesada, a coletivização da agricultura, a preparação da defesa do país para a guerra e a construção do socialismo. Em suma, a URSS, que em 1926 era um país agrário, tornou-se uma potência industrial, mas, pelo “cálculo” de Dushnyck, isso não teria afetado a taxa de natalidade - o que é impossível, como sabe todo brasileiro, principalmente se for nordestino e vier trabalhar em São Paulo.

A conseqüência é que aqueles que jamais nasceram foram considerados mortos por um genocídio. Pois a taxa de natalidade, evidentemente, caiu entre 1926 e 1939 – e caiu significativamente.

Além disso, Dushnyck pressupõe que ninguém morreu de outra causa que não a fome entre 1926 e 1939, apesar de, além da morte por velhice, terem eclodido na URSS, durante esse período, duas grandes epidemias – tifo e malária, ambas sem tratamento conhecido na época.

Como disse o sociólogo Albert Szymanski (“Human Rights in the Soviet Union”, Londres, 1984), para que o “cálculo” de Dushnyck tivesse algum sentido era necessário que o número de mulheres no auge da fertilidade fosse o mesmo antes e depois de 1932-1933. Mas, naturalmente, isso também é impossível, pois as mortes na guerra e o decréscimo de natalidade entre 1914 (início da I Guerra Mundial) e 1921 (fim da Guerra Civil) trouxe, necessariamente, um decréscimo no número de mulheres aptas a procriar durante a década de 30 (como lembrou o demógrafo S.G. Wheatcroft, anti-comunista, mas com escrúpulos, mulheres que nascessem em 1914 teriam apenas 16 anos em 1930).

No “cálculo” de Dushnyck se omite, também, que uma parte da população que no censo de 1926 era classificada como ucraniana – cerca de 2 a 3 milhões de cossacos – foi reclassificada, no censo de 1939, como russa, pela simples razão de que viviam da Rússia e não na Ucrânia. Esses 2 a 3 milhões, no censo de 1926, estavam inflacionando indevidamente a população ucraniana.

Apesar disso tudo, entre os censos de 1926 e 1939, a Ucrânia aumentou sua população em 3 milhões e 339 mil pessoas. Porém, os adeptos desse método não consideram a população real, mas uma projeção fantasiosa – e muito interessada - de qual “deveria ser” o número de habitantes.

Já voltaremos a esses gênios da estatística. Antes, veremos os motivos que levaram a esse tipo doido de numerologia.

HOLO-EMBUSTE”

Numa declaração ao semanário “Village Voice”, de Nova Iorque, Eli Rosenbaum, então consultor legal do Congresso Mundial Judaico, fez uma observação aguda sobre as tentativas de fabricação de um “holocausto ucraniano”: “eles estão sempre aparecendo com um número [de mortos] maior do que seis milhões, para fazer o leitor pensar: ‘Meu Deus, é pior que o Holocausto [judaico]” (Jeff Coplon, “In Search of a Soviet Holocaust”, Village Voice, 12/01/1988).

Rosenbaum, depois diretor do Office of Special Investigations (OSI) – a divisão do Departamento de Justiça dos EUA encarregada de investigar criminosos de guerra nazistas em território norte-americano – sabia do que estava falando.

Jeff Coplon, o articulista do Village Voice, nota que foi depois da instituição do OSI que a campanha do “holocausto ucraniano” se tornou mais intensa. A primeira ação relevante do OSI foi, precisamente, a prisão do ucraniano, naturalizado norte-americano, John Demjanjuk - que era, na verdade, o nazista “Ivan, o Terrível”, um dos mais atrozes carrascos do campo de extermínio de Treblinka.

Assim, não é uma coincidência que boa parte dos fabricantes do “holocausto ucraniano” sejam os mesmos que negam a carnificina de Hitler sobre milhões de judeus e eslavos. No Village Voice havia um contundente exemplo:

No último catálogo da Noontide Press, filiada ao Liberty Lobby do exuberante fascista Willis Carto, ‘The Harvest of Sorrow’ [o livro de Robert Conquest que exumou a fraude do “holocausto ucraniano”] é listado lado a lado com tomos revisionistas tais como ‘O Mito de Auschwitz’ e ‘Hitler ao Meu Lado’. Para propagandear o livro de Conquest e sua fome-terrorista, o catálogo nota: ‘O ato de genocídio contra o povo ucraniano foi escamoteado [sic] até recentemente, talvez porque um holocausto real pode competir com um holo-embuste’. Para os que não são habituados com o jargão da Noontide, o ‘holo-embuste’ refere-se ao massacre de seis milhões de judeus” (Village Voice, art. cit.).

Voltaremos, num próximo artigo, às observações de Coplon. Por ora, basta a sua descrição do recrudescimento da campanha nos EUA:

Pressionando cada pedal, mexendo todos os pauzinhos, está um lobby nacionalista ucraniano, esforçando-se em puxar para debaixo do tapete sua própria história de colaboração com os nazistas. Pela revisão de seu passado, esses emigrados ajudam a apoiar um mais ambicioso revisionismo: uma negação do holocausto de Hitler contra os judeus”.

REAGAN

Após a publicação, em 1987, de “Fraud, Famine and Fascism”, do pesquisador canadense Douglas Tottle, o “holocausto ucraniano” se tornou, para usar uma expressão chegada ao assunto, um caso historicamente liquidado.

Na verdade, ele jamais se sustentou em pé, apesar de vários obcecados – e bem pagos – elementos. A principal razão era a sua total falta de lógica. Não somente não interessava a Stalin que a população ucraniana decrescesse, como essa jamais foi a política do governo da URSS. Pelo contrário, sua política era de estímulo ao aumento da população.

Além disso, em 1932 a coletivização foi completada. Se nesse ano ainda persistiam dificuldades, a colheita de 1933, na qual a participação da Ucrânia foi decisiva, foi um recorde na história do país, o que teria sido impossível sem a semeadura do ano anterior - que certamente não foi realizada pelos fantasmas dos que morreram de fome...

O fato é que, na década de 30, o “holocausto ucraniano” havia sido desmascarado como uma fraude nazista. No pós-guerra, apesar da CIA ter recrutado apoiadores entre os nazistas ucranianos e financiado outra campanha em torno dele, acabou caindo em completo descrédito na segunda metade da década de 60.

Sua última aparição de alguma importância, nessa época, foi em 1964, quando um certo professor Dana Dalrymple publicou um artigo onde pretendia descobrir o real número de mortos da fome: simplesmente, como o leitor poderá verificar nesta página, em que reproduzimos a tabela de Dalrymple, ele fez a média entre as mais estapafúrdias estimativas – incluindo as dos nazistas. Para que ficasse de acordo com os conformes, Dalrymple deu um toque pessoal à invenção: estendeu a “fome de 1932-33” até 1934 (cf. Dana Dalrymple, “The Soviet Famine of 1932-1934”, Soviet Studies, janeiro, 1964).

Sem essa prorrogação da fome por mais um ano, Dalrymple não poderia aproveitar as histórias de Thomas Walker, aliás, Robert Green - o foragido de uma cadeia do Colorado que o magnata da imprensa americana W.R. Hearst contratou para escrever sobre a “fome na Ucrânia”. Walker/Green, apresentado como “testemunha ocular” da fome, jamais esteve na Ucrânia, como confessou quando foi recapturado, mas esteve alguns dias na URSS – porém, somente em 1934. Portanto, só poderia ter sido testemunha ocular da fome se ela fosse estendida até esse último ano...

Depois da década de 60, a fraude somente foi retirada do baú em 1983 – por Ronald Reagan, então em campanha acirrada contra a URSS e contra qualquer “distensão”. Três anos depois, no dia 7 de setembro de 1986, uma carta de Reagan dirigida à viúva de Yaroslav Stetsko - criminoso de guerra, colaborador dos nazistas durante a ocupação da Ucrânia e um dos cabecilhas da mal chamada “Organização Nacionalista Ucraniana” - foi lida pelo general John Singlaub, numa conferência da Liga Anti-comunista Mundial.

Disse Reagan à viúva de Stetsko: “A coragem e dedicação de seu marido à liberdade servirá como uma continuada fonte de inspiração para todos aqueles que lutam pela liberdade e auto-determinação” (Village Voice, art. cit.).

MACE

O novo método estatístico, introduzido por Dushnyck, fez sucesso entre os mercenários do anti-comunismo porque o antigo método – o chute descarado, puro e simples – estava desmoralizado, depois da tentativa de rejuvenescê-lo através de uma simples média aritmética, feita por Dalrymple em 1964.

Assim, depois de Dushnyck, o parceiro de Conquest, James Mace, usou o mesmo método em 1984, num artigo intitulado “Famine and Nationalism in Soviet Ukraine”. O artigo foi publicado pela revista “Problems of Communism” (edição de maio-junho de 1984). Essa revista (hoje rebatizada para “Problems of Post-Communism”) é o órgão da United States Information Agency (USIA), a mesma agência do Departamento de Estado que, como lembra Douglas Tottle, é responsável pela “Voz da América”, pela “Radio Marti”, tendo organizado a missão de espionagem do KAL 007 (o uso de um avião de passageiros sul-coreano para sobrevoar a URSS, com o resultado de que foi abatido pela defesa aérea soviética), entre outras aventuras.

Na próxima edição, examinaremos em detalhes o caso Mace/Conquest e sua manipulação dos censos soviéticos.

Continuação

O principal engodo foi apontado por Barbara Anderson e Brian Silver, dois demógrafos muito respeitados: ao estabelecer uma taxa de natalidade superfaturada, omitindo o decréscimo dessa taxa durante a década de 30, Mace conta os que nunca nasceram como se fossem mortos. Os “mortos” são fabricados pelo truque de estabelecer uma falsificada taxa de natalidade

CARLOS LOPES

Depois que Reagan, em 1983, tirou o “holocausto ucraniano” do museu das fraudes históricas, coube a Robert Conquest a tentativa de dar a ele alguma credibilidade. Fez isto através de seu livro “The Harvest of Sorrow” (1986), um prolixo panfleto de mais de 400 páginas segundo o qual Stalin premeditou e provocou, contra o seu próprio interesse como líder da URSS, uma gigantesca fome para eliminar o povo ucraniano nos anos 1932-1933.

Na primeira parte deste artigo, vimos como, diante da insustentabilidade da história - na qual, sem fatos, sem testemunhas e sem vestígios, teriam morrido de fome de 1 milhão a 15 milhões de ucranianos (haja rigor!) - passou-se a um novo método de “cálculo” dos mortos, baseado na manipulação de números dos censos soviéticos: estabelecia-se uma taxa de natalidade irreal, superestimada, para o período entre os dois censos soviéticos anteriores à II Guerra Mundial (1926 e 1939) e, assim, fabricavam-se os mortos com a diferença entre a estimativa fantasiosa, inflacionada, e a população real que havia na URSS em 1939.

O problema é que seu inventor, como mencionamos, não era nada respeitável – um colaborador dos nazistas, terrorista, condenado na Ucrânia e abrigado nos EUA, Walter Dushnyck. Porém, já em 1984 (ano seguinte à da publicação do livreto de Dushnyck), os parasitas da invenção nazista do “holocausto ucraniano” - Robert Conquest, James Mace e outros – pareciam ter descoberto a pólvora. Mas tomaram o cuidado de escantear o verdadeiro autor do método, citando-o marginalmente, ou simplesmente evitando citações. Foi então que se pretendeu dar dignidade acadêmica ao que não era mais do que uma charlatanice de fugitivos dos tribunais para criminosos de guerra.

O aproveitamento acadêmico da tecnologia Dushnyck de manipulação dos censos soviéticos coube ao “pesquisador contratado” de Conquest, James Mace, da Universidade de Harvard.

O motivo de ceder a primazia à Mace, que já vinha fazendo tentativas nesse campo específico da fraude histórica, é que Conquest não sabe lidar com números, exceto quando se trata de dólares. A aritmética extra-monetária nunca foi o seu forte. Em “O Grande Terror” (1968) ele inflou tanto o número dos atingidos pela repressão soviética à sabotagem e conspiração pró-nazista de antes da II Guerra Mundial, que até o fundador da “sovietologia”, Alexander Dallin, autor de “Political Terror in Communist Systems”, fez questão de declarar que nada tinha a ver com os números de Conquest. Mal sabia Dallin, que tentava dar foros de ciência ao que era apenas propaganda servida em forma de protocolo acadêmico, que em breve (1981) teria que suportar Conquest dentro de seu próprio departamento, na Universidade de Stanford...

Depois da abertura dos arquivos da URSS, então, o livro tornou-se perfeitamente ridículo – exceto em algumas revistas e jornais que pouco se distinguem de uma casa de prostituição.

É verdade que, além da lambança que fez com os números de “vítimas” e na análise dos censos soviéticos, Conquest contribuiu bastante para seu próprio ridículo ao publicar, em 1984, um manual sobre o que os americanos deveriam fazer quando os russos invadissem o país (“What To Do When the Russians Come: A Survivor’s Guide” - “O Que Fazer Quando os Russos Chegarem: Um Guia de Sobrevivente”). A intenção era contribuir para a histeria insuflada por Reagan e caterva contra a URSS, faturando uns cobres na onda. Mas, como disse um resenhista norte-americano isento de pendores para a esquerda, foi a propaganda anti-comunista mais hilariante da Guerra Fria.

Voltando aos números, em 2007, no prefácio à uma nova edição de “O Grande Terror”, Conquest diminuiu em nada menos do que 7 milhões o número de “vítimas” na URSS durante o período de Stalin, em relação à edição de 1968 - com o mesmo critério com que antes incluiu esses 7 milhões, isto é, nenhum, e com a abertura dos arquivos soviéticos desmentindo o velho e o novo número.

DEMOGRAFIA

Por sua ignorância em aritmética, Conquest cedeu o papel principal na manipulação estatística a James Mace. E, convenhamos, este se esmerou.

Já nos referimos ao seu artigo “Famine and Nationalism in Soviet Ukraine” (1984), publicado pelo órgão da United States Information Agency (USIA), “Problems of Communism”. Agora, vamos ao seu conteúdo.

Diz Mace:

Se subtraímos nossa estimativa da população [ucraniana soviética] pós-fome da população [ucraniana soviética] pré-fome, a diferença é 7.954.000, o que pode ser tomado como uma estimativa do número de ucranianos que morreram antes da sua hora [died before their time]”.

O absurdo maior não está nesse perspicaz conceito de “morte antes da sua hora” (não morreu ninguém de velhice na Ucrânia nos 13 anos entre os censos de 1926 e 1939? E, por outro lado, quem morre, por exemplo, num acidente - teve “morte antes da sua hora”? E quem morre jovem de uma doença para a qual, na época, não existia tratamento? Em suma, não há significado em “morte antes da sua hora”, exceto atribuir aos comunistas qualquer morte que aconteça – ou mortes inexistentes).

O principal engodo foi apontado por Barbara Anderson e Brian Silver, dois demógrafos muito respeitados, ainda que sejam do tipo que acha científico fazer cálculos sobre o “excesso de mortes” na URSS. Apesar disso, por não serem ignorantes em seu campo de estudos, não querem sua reputação profissional atirada na mesma vala de Mace, Conquest, Dushnyck e outros.

Exatamente como Dushnyck, ao estabelecer uma taxa de natalidade superfaturada, omitindo o decréscimo dessa taxa durante a década de 30, Mace conta os que nunca nasceram – isto é, a inexistente população fabricada por sua falsa taxa de natalidade - como se fossem mortos (cf. Barbara Anderson e Brian Silver, “Demographic Analyis and Population Catastrophes in the USSR”, Slavic Review, 44, Nº 3, 1985, págs. 517 a 519).

Resumindo: o “déficit” populacional ucraniano de Mace (quase 8 milhões de pessoas) foi forjado por ele mesmo, ao usar uma taxa de natalidade falsa.

Os resultados de Barbara Anderson e Brian Silver tinham outro inconveniente para a dupla Conquest/Mace: eles eram coerentes com os resultados alcançados por um de seus alvos de difamação, o estatístico e demógrafo Frank Lorimer, que em 1946, em Genebra, publicou, sob o patrocínio da ainda existente Liga das Nações, o livro “The Population of Soviet Union: History and Prospects”.

Lorimer era um homem de imensa notoriedade em sua área de trabalho – quase sempre, justificada. O problema de Conquest e Mace era (e é) que os resultados de Lorimer tornam impossível que houvesse 14,5 milhões - ou 10 milhões, ou 5 milhões, ou mesmo 3 milhões - de mortos de fome somente na Ucrânia entre 1932-1933, porque ele calculou para toda a URSS um “excesso de mortes” entre 3,2 milhões e 5,5 milhões entre 1926 e 1939.

É justo observar, como fazem Barbara Anderson e Brian Silver, que Lorimer diz, em seu livro: “Há, naturalmente, muitas outras fontes de possível erro em todas essas computações. Conseqüentemente, estes resultados devem ser aceitos com muitas reservas” (Frank Lorimer, “The Population of Soviet Union: History and Prospects”, Liga das Nações, Genebra, 1946, pág. 240, citado por Anderson e Silver, art. cit.).

Era inevitável que Conquest e Mace tentassem difamar Lorimer – que já havia falecido quando Conquest publicou “The Harvest of Sorrow”.

Entretanto, como observou um comentarista, escrevendo no “Challenge”, de Nova Iorque, o estudo de Silver e Anderson é ainda pior para o “holocausto ucraniano” (e para Conquest e Mace) que o de Lorimer:

De fato, Anderson e Silver dão a impressão de acreditar que o número total [das ‘mortes em excesso’ para toda a URSS] é, de longe, menor do que isso. Usando sua [Taxa de] Alta Mortalidade Presumida, que ‘aproxima as taxas de mortalidade que Lorimer pensou que efetivamente prevaleciam na URSS como um todo em 1926-27, mais altas do que aquelas oficialmente relatadas’, das [taxas de mortalidade] de 1939, pode ter havido somente 500 mil ‘mortes em excesso’ entre as pessoas vivas em 1926” (Challenge, New York, ed. de 04/03/1987).

Em meio à maior luta de classes da História, isso é menos do que os mortos admitidos oficialmente na Guerra Civil dos EUA (620 mil mortos). Com a diferença de que a Guerra Civil norte-americana durou 4 anos (1861-1865) - menos que um terço dos 13 anos de História da URSS aqui considerados (1926-1939).

NEO-MANIPULAÇÃO

Até agora, não há novidades em relação a Dushnyck. O que James Mace faz é apenas plagiar o ex-terrorista e ex-colaborador dos nazistas, que, provavelmente, não imaginou que o seu método pudesse fazer tanto sucesso em Harvard e Stanford. Aliás, nem deve ter percebido que era um método.

Porém, Mace resolveu dar o seu toque pessoal: “provar” a existência do “holocausto ucraniano”, através do censo soviético de 1959, ou seja, mais de três décadas depois do censo de 1926.

Diz ele:

Nós podemos achar traços da fome procurando [no censo de 1959] por regiões onde o número de camponesas (o segmento menos móvel da população) nas faixas de idade que teriam nascido imediatamente antes ou durante a fome é anormalmente pequeno. Estas regiões existem na Ucrânia Soviética, uma nação de tradições ferozmente independentes; nas regiões habitadas por grandes populações cossacas, também ferozmente independentes; e nas áreas dos alemães do Volga” (carta de Mace ao professor Jaroslaw Rozumnyj, 04/02/1984, citada por Douglas Tottle, “Fraud, Famine and Fascism”, Toronto, 1987, pág. 72. A nota de Tottle – pág. 149 – para esse trecho é a seguinte: “Uma cópia desta carta enviada por Mace ao Comitê Canadense Ucraniano – UCC – foi apresentada em uma reunião do Conselho Escolar de Winnipeg em 14 de fevereiro de 1984, para apoiar a campanha do UCC de incluir o tópico da “fome-genocídio” no currículo escolar”).

Com essa novidade, Mace conseguiu superar Dushnyck com vários corpos de distância. Pelo menos,  Dushnyck se limitou aos censos de 1926 e 1939. Assim, não teve que ignorar, como faz Mace, que entre 1933 (o início da suposta “fome”) e 1959 houve um acontecimento histórico denominado II Guerra Mundial – que foi decidido, precisamente, na URSS, e que teve na Ucrânia algumas das suas batalhas mais sangrentas, assim como alguns dos maiores massacres de toda a História humana. Por falar em genocídio, segundo a Larousse, o maior de todos os tempos foi, exatamente, o realizado pelos nazistas na URSS, onde 15% da população, comprovadamente, morreu durante a invasão alemã.

Douglas Tottle observa, por exemplo, que, entre 1941 e 1943, a região ucraniana da cidade de Kharkov foi terreno de quatro das maiores batalhas da II Guerra – e que somente sobreviveram metade dos habitantes da cidade.

Da mesma forma, Mace omite que 600 a 700 mil dos “alemães do Volga” (colônias alemãs que existiam às margens desse rio) foram deslocados da região pelo governo soviético em 1941, quando os nazistas se aproximavam, por motivos óbvios (aliás, os alemães do Volga já haviam sido base das hordas “brancas” e estrangeiras durante a Guerra Civil, logo após a Revolução).

Além de ignorar aqueles que residiam [nessas regiões] nos anos 30 que morreram ou foram deslocados devido à guerra, Mace também ignora o vasto número que partiu para outras áreas e repúblicas durante o período de reconstrução em massa do pós-guerra. Em resumo, o censo de 1959, como o próprio Mace sabe, revela padrões demográficos atribuíveis primariamente aos desenvolvimentos pós-1941. (....) Pode-se concluir que qualquer admissão da [ocorrência da] II Guerra Mundial foi vista por Mace como um fato em detrimento de seu caso – ele não trata do genocídio nazista, buscando somente convencer os leitores do ‘genocídio comunista’” (Tottle, op. Cit.).

Resta dizer apenas que com essa manipulação dos números do censo de 1959, Mace, ao omitir o efeito da II Guerra Mundial sobre a população ucraniana e russa, inocentou os nazistas dos hediondos crimes que praticaram na URSS – todos os que morreram na guerra e nos massacres de civis, todas as vítimas do nazismo, foram, através desse embuste, atribuídas a Stalin. O que, provavelmente, era mesmo a intenção.

Os censos da URSS e a fraude do “holocausto ucraniano” (3)

Funcionário do IRD - o departamento de “propaganda encoberta” do serviço secreto inglês - Conquest tentou ressuscitar o “holocausto ucraniano”. Segundo ele, “nessa espécie de história não há prova” e “a melhor fonte é o rumor”. Foi desmentido até pelos anti-comunistas da “sovietologia”

CARLOS LOPES

Forçoso é reconhecer que George Bush (pai) tinha suas razões para condecorar Robert Conquest com a “Medalha Presidencial da Liberdade”: a presidência de Bush não era mais do que a extensão de seu mandato como diretor da CIA; as obras “históricas” de Conquest são apenas a continuação de sua atividade funcional no departamento de desinformação do MI6.

Há 17 anos, quando publicou, aqui no HP, “A Constelação dos Falsificadores da História” (posteriormente incluído no livro “A História Continua”), Cláudio Campos, fundador de nosso jornal e secretário geral do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, caracterizou precisamente essa atividade funcional:

No final dos anos 60, Robert Conquest preencheu centenas e centenas de páginas, às quais deu o nome de ‘O Grande Terror’. O livro pretendeu ser um estudo exaustivo e em profundidade dos ‘crimes’ e ‘expurgos’ de Stalin, e obteve grande repercussão nos meios que queriam ouvir o que Conquest dizia. Ele era ‘apoiado’ numa quantidade verdadeiramente impressionante de documentos, relatórios secretos e não secretos, atas de reuniões e congressos do PCUS, testemunhos, uma infinidade de depoimentos em livros, revistas e jornais. (....) “Conquest não revelava a menor capacidade de avaliar, analisar, confrontar de forma séria esses documentos, de maneira a poder estabelecer qual era, de fato, a verdade histórica. Ele estava doentiamente obcecado por uma fantasia que preestabelecem de Stalin, e usava esses documentos simplesmente para pinçar aqui e ali, da forma mais irresponsável possível, os elementos que lhe permitissem reproduzir o seu tenebroso pesadelo. Revelava uma impermeabilidade verdadeiramente notável para os gritantes elementos de verdade contidos naqueles materiais, completa adstringência aos relatos mais inverossímeis e, sobretudo, uma imaginação absolutamente solta e pervertida na ‘interpretação’ dos textos que reunira”.

Na época em que Cláudio escreveu as palavras acima, ainda não era conhecido amplamente o passado de Conquest como funcionário do IRD (“Information Research Department” - o departamento do serviço secreto inglês para, nas palavras de seu criador, Christopher Mayhew, “contra-ofensiva de propaganda encoberta contra os russos”).

O fato, apesar de revelado pela primeira vez em 1978 pelo repórter David Leigh, no “The Guardian”, de Londres, não chamou a atenção até a segunda metade da década de 90.

Também não era sabido que “O Grande Terror” (1968) é, fundamentalmente, um recozinhamento dos textos que Conquest preparara para o IRD entre 1947 e 1956, recheados por citações da documentação soviética a que esse colarinho branco do MI6 teve acesso antes da substituição de Kruschev na URSS. Confirmando a exatidão das palavras de Cláudio, o contato com essa documentação não teve nenhum efeito sobre Conquest. Nada mudou no que já havia escrito. Serviu apenas para que ele pinçasse trechos, introduzindo-os no que antes produzira sem precisar de documentação alguma.

SOVIETÓLOGOS”

Algo diferente aconteceu com “The Harvest of Sorrow” (1986), onde ele já não dispunha mais de acesso aos arquivos soviéticos – e, mesmo que dispusesse, seria inútil para rechear a falcatrua do “holocausto ucraniano”, pois esses arquivos estão abertos desde 1990 e ninguém conseguiu encontrar nada para apoiar essa invenção, nem Conquest conseguiu, a partir deles, acrescentar uma linha ao que havia publicado em 1986.

Assim, as fontes de Conquest em “The Harvest of Sorrow” são, aberta e quase exclusivamente, os colaboracionistas ucranianos – isto é, os criminosos de guerra que, depois da libertação da Ucrânia pelo Exército Vermelho, entraram nos EUA e Canadá, sendo depois aproveitados pela CIA.

Na verdade, foram eles que bancaram Conquest durante a feitura do livro: a Ukrainian National Association, um grupo com sede nos EUA que desde antes da II Guerra era composto por simpatizantes do nazismo (seu jornal, por germanofilia, foi proibido no Canadá durante a guerra), pagou US$ 80 mil a Conquest para que “The Harvest of Sorrow” fosse escrito - o que, segundo ele, foi uma generosa doação para as despesas com “pesquisas” (cf. Jeff Coplon, “In search of a soviet holocaust”, Village Voice, 12/01/1988).

Em seguida à publicação, aqueles anti-comunistas do meio acadêmico que pretendiam alguma credibilidade, dissociaram-se, como observa Coplon,  imediatamente do livro de Conquest. A começar pelo já citado Alexander Dallin, declarando que a história de Conquest “não faz sentido”. (Dallin tinha fama de ser o mais “liberal” dos “sovietólogos”; para que o leitor tenha uma idéia, um dos seus livros sobre a URSS foi escrito em parceria com sua aluna favorita, a senhorita Condoleezza Rice).

Roberta Manning, que escreveu “The Tragedy of the Soviet Village: Collectivization and Dekulakization”, resolveu ser caridosa com Conquest: “Ele é terrível fazendo pesquisa. Ele malbarata as fontes, distorce tudo”.

Um pouco mais incisiva foi sua colega Lynne Viola, autora de uma série de livros sobre a “resistência popular e camponesa” ao “regime de Stalin” e primeira acadêmica dos EUA a ter acesso aos arquivos soviéticos sobre a coletivização da agricultura: “Eu desprezo completamente [o livro de Conquest]. Por que, em nome de Deus, esse governo paranóico desejaria conscientemente produzir uma fome, quando estavam aterrorizados pela guerra [com a Alemanha]?”.

Mas nada se comparou, em síntese e expressividade, à reação de Moshe Lewin, autor de um calhamaço denominado “Russian Peasants and Soviet Power: A Study of Collectivization”, ao livro de Conquest:

Isso é merda, lixo [this is crap, rubbish]. Eu sou um anti-stalinista, mas não vejo como essa campanha [do “holocausto ucraniano”] vai aumentar o nosso conhecimento, somando horrores, somando horrores, até se tornar uma patologia”.

Mas quem disse que a questão – de Conquest e, na verdade, dos “sovietólogos” em geral - é aumentar o conhecimento?

BLACK PROPAGANDA

Na reportagem de David Leigh no “The Guardian”, o fundador do IRD, Christopher Mayhew, que em 1947 era sub-secretário do Ministério das Relações Exteriores inglês (Foreign Office), declara que o material anti-comunista que o departamento fornecia a jornalistas da Inglaterra e de outros países “somente era ‘black propaganda’ no sentido de que nosso trabalho era todo encoberto e a existência do departamento era confidencial” (cf. David Leigh, Death of the department that never was, “The Guardian”, 27/01/1978, pág. 13; sobre o IRD, ver, também, “The Observer”, 29/01/1978, How the FO waged secret propaganda war in Britain).

“Black propaganda” é o nome dado pelos “serviços de inteligência” à propaganda que é passada ao público sem que este saiba que é propaganda, isto é, como se fosse fato ou notícia. Somente por essa razão, para passar como fato a propaganda mais enganosa, o “trabalho” precisa ser “todo encoberto”, inclusive a existência do departamento que o faz. Porém, a julgar pelo que diz Mayhew, as coisas eram assim (inclusive em relação ao Parlamento) para garantir que a propaganda do IRD dissesse somente a verdade... Um fariseu inglês não tem competidores entre os fariseus do mundo. São muitos anos de experiência e refinamento. Segundo a reportagem do The Guardian, “funcionários ‘seniores’ [do IRD] admitem que o material passado [aos jornalistas] era pesadamente ‘tendencioso’ [slanted]’’.

Leigh descreve que “o IRD também encorajou a produção de livros, descrita em Whitehall [sede do Foreign Office] como ‘fertilização cruzada’”. O principal exemplo de “fertilização cruzada” são os livros de Conquest, que aparece na reportagem contando que “depois que deixou o IRD, foi sugerido que ele poderia combinar em um livro alguns dos dados que tinha reunido de publicações soviéticas. Ele vendeu à[editora] Bodley Head uma série já pronta [ready-made] de oito ‘estudos soviéticos’. Bodley, disse, publicou-os como um negócio comercial normal, vendendo (....) um terço das cópias para [o editor encoberto da CIA] Fred Praeger, que também publicou-os como um negócio comercial normal”.

O departamento de Conquest só não era segredo para o serviço de segurança soviético, que teve um agente dentro dele, Guy Burgess. O IRD sabia disso desde 1951, quando Burgess foi para a URSS. Mas isso não incomodou o departamento: quem não podia saber da sua existência era o povo inglês e outros povos do mundo.

PERCOLAR

Antes de “The Harvest of Sorrow”, Conquest já havia tentado outros pogroms contra a pátria de Gogol. Em “O Grande Terror”, a fome matava 3 milhões de ucranianos. Dezoito anos depois, os mortos subiram para 14,5 milhões. Entre um morticínio e outro, Conquest, com alguns parceiros, produziu, em 1984, “The Man-Made Famine in Ukraine” (“A fome artificial [“Man-Made”= fabricada pelo homem] na Ucrânia”).

Nesse panfleto precursor, diz Conquest:

Nessa espécie de história nós não temos prova. (....) a incontestabilidade da evidência pode ser plena mesmo quando não é documentada ou completa” (cf. pág. 37 de “The Man-Made Famine in Ukraine”, Washington, 1984, American Enterprise Institute).

É mesmo pior do que a exposição que fez sobre “O Grande Terror”:

A verdade, portanto, somente pode ser filtrada [percolate] na forma de disse-me-disse [hearsay] (....) basicamente, a melhor fonte, ainda que não infalível, é o rumor”.

Tão interessante quanto a declaração despudorada de que sua fonte é o boato, é a afirmação de que a verdade, em vez de conhecida em sua essência, precisa ser “filtrada” (no original, “percolada”, isto é, coada e limpa de “resíduos”, inclusive com o uso de soda cáustica – v. os verbetes “percolação” e “percolar” no Dicionário Caldas Aulete, ed. 1980).

Logo, vale tudo: a “fome provocada” na Ucrânia não foi uma punição aos que não aderiram à coletivização, pois, diz Conquest, a fome foi também contra os que aderiram a ela. Por que Stalin iria fazer isso contra os que o apoiavam, Conquest não explica. Não se sabe, também, porque Stalin desistiu de “eliminar” o povo ucraniano após 1933.

E havia mais coisas inexplicáveis:

Tombaram, na luta contra o nazismo e os traidores do país que Hitler instalou durante a ocupação, quase 9 milhões de ucranianos. Assim como os 500 mil ucranianos que constituíram a Resistência – isto é, que formaram a guerrilha soviética debaixo da ocupação nazista – eles eram, na grande maioria, camponeses, e tinham, como lema, “por Stalin e pela pátria”. Tão heróico comportamento e tão grande entusiasmo por Stalin, depois que 40% ou 60% de seus compatriotas morreram numa fome deliberadamente provocada?

Com tanta coisa – e desse tamanho - por explicar, Conquest não podia se safar com a fulgurante teoria de que o “holocausto ucraniano” não precisava de provas, simplesmente porque não tinha provas. Nem com a instituição do “disse-me-disse” como fonte suprema da verdade.

Daí, o recurso à manipulação dos números dos censos soviéticos.

ESTABLISHMENT

Alguns leitores, provavelmente, nos perguntarão como é possível que uma falsificação tão grosseira tivesse o patrocínio de universidades como Harvard e Stanford - que, com as de Princeton e Yale, são o “créme de la créme” do establishment acadêmico dos EUA.

McGeorge Bundy, que foi reitor em Harvard, professor da Universidade de Nova Iorque, Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA (1961-1966), coordenador das operações encobertas do governo norte-americano (1964-1966) e presidente da Fundação Ford, definiu assim a questão:

Em enorme medida, os programas de estudo de área desenvolvidos pelas universidades americanas nos anos depois da guerra foram compostos, dirigidos ou estimulados pelos diplomados do OSS [Office of Strategic Services: o antecessor da CIA] – uma notável instituição, meio tira-e-ladrão e meio encontro de faculdade. Ainda é verdade hoje, e eu espero que sempre será, que existe um alto grau de interpenetração entre as universidades com programas de área e a miríade de agências de informação do governo dos Estados Unidos.” (McGeorge Bundy, “The Dimensions of Diplomacy”, cit. em Douglas Tottle, “Fraud, Famine and Fascism”, pág. 58).

O OSS foi dissolvido pelo presidente Truman em setembro de 1945. Portanto, não é ao OSS que McGeorge Bundy se refere, ao falar dos programas das universidades “nos anos depois da guerra”, mas à CIA – da qual foi um dos idealizadores, com Allen Dulles, George Kennan e Nelson Rockefeller.

Apenas, Bundy é demasiado fariseu para falar publicamente a verdade, mesmo quando sabe que todos sabem do que está falando, não fosse ele o inventor da teoria da “negativa plausível”, pela qual o governo americano pode mentir à vontade, desde que tenha uma história para encobrir a mentira.

PREITO

Em abril de 2005, durante a festa de aniversário de um companheiro e amigo comum, comentei com Cláudio Campos alguns artigos de Walter Duranty, correspondente, na década de 30, do “The New York Times” na URSS.

Naquele dia, o que mais interessou a Cláudio foi a campanha de difamação contra Duranty, após sua morte, em 1957, cuja base é a de que ele teria ocultado a “fome na Ucrânia” dos leitores do “Times”. Ao contrário do que Conquest e outros disseram, as matérias de Duranty estão longe de ser apologéticas em relação ao socialismo, mesmo em relação à Ucrânia de 1932-1933. Apenas, ele recusou-se a endossar a fraude nazista.

Cláudio manifestou, então, que devíamos pesquisar e escrever um artigo sobre o assunto, e fez várias sugestões valiosas a esse respeito. Fiquei, então, de levar o projeto à frente. No entanto, o falecimento de Cláudio, no mês seguinte, impediu-me de continuar contando com sua sempre luminosa orientação. Nos últimos três anos, tenho voltado esporadicamente à pesquisa das fontes, mas sem tempo para finalizar algo sobre o assunto.

O fato é que somente agora, depois do discurso de um senador da oposição repetindo as infâmias nazistas de 75 anos atrás, senti-me obrigado a publicar o que várias vezes esbocei.

Assim, este trabalho é dedicado ao seu verdadeiro idealizador. As imperfeições, naturalmente, devem ser depositadas na minha conta-corrente.

A Cláudio Campos, in memoriam.

 

Traição ao socialismo foi causa de extinção da URSS

A afirmação foi feita por dois militantes comunistas norte-americanos ao jornal Avante!, do Partido Comunista Português, em entrevista publicada nesta quinta-feira (25), sobre o exaustivo estudo que os dois fizeram em um livro dedicado às causas da derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo.

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Roger Keeran e Thomas Kenny são militantes comunistas norte-americanos. Roger é historiador com obra publicada e professor universitário. Thomas é economista. Amigos de longa data, lançaram-se juntos no estudo e aprofundamento das causas que levaram à derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo. As reveladoras conclusões a que chegaram estão expostas no seu livro Socialismo Traído, recentemente publicado pelas Edições Avante!

Desde quando e porquê se interessaram pela investigação das causas da derrota do socialismo e do colapso da União Soviética?

Thomas Kenny – Tanto eu como o Roger considerámos os acontecimentos entre 1989 e 1991, o colapso do socialismo europeu, como um desastre titânico. Após 1991 pensámos que a história do socialismo suscitaria o interesse de muitos investigadores e que haveria uma avalanche de publicações sobre o assunto. Mas enganámo-nos, não houve nada, apenas silêncio. Apesar de este não ser o campo de trabalho de nenhum de nós, decidimos especializar-nos nesta área para fazer a investigação, lendo toda a literatura que encontrámos disponível. Trabalhámos durante quatro anos, entre 1991 e 2004, ano em que publicámos o livro nos Estados Unidos com as conclusões do estudo.

Mas o que nos levou realmente a tentar determinar as causas do colapso foi o fato de a teoria em que acreditamos não "autorizar" tal situação. O colapso do socialismo estava em contradição com tudo aquilo em que acreditávamos. Nunca pensámos que fosse possível destruir o socialismo, antes pelo contrário acreditávamos firmemente que o socialismo iria desenvolver-se e crescer continuamente.

O materialismo histórico estaria afinal errado?…

TK – Não. Estávamos certos de que, enquanto método, o materialismo histórico permanecia válido, mas interrogámo-nos por que é que nada se disse sobre isto? Precisámos de muitas leituras e mais de um ano e meio até começarmos a identificar algumas peças deste quebra-cabeças e nos darmos conta do peso da chamada "segunda economia" na União Soviética, fator que se revelou decisivo nas nossas conclusões.

Roger Keeran – Nós acreditávamos que o socialismo do século 21 precisava saber o que é que tinha acontecido ao socialismo do século 20. Depois da Revolução de Outubro, o acontecimento mais importante do século 20 foi, talvez, a destruição da União Soviética e do socialismo na Europa.

Existe a idéia de que a perestróika constituiu uma resposta a uma crise econômica, social, política, cultural, ideológica, moral e partidária, consequência de graves deformações ao ideal socialista, de distorções, erros e atrasos acumulados ao longo de muitos anos. Afirma-se que o "modelo" soviético de socialismo havia esgotado as suas potencialidades de desenvolvimento, tornando-se necessário proceder a reformas radicais. Querem comentar?

RK – É natural que perante um passo atrás tão tremendo as pessoas tendam a reagir com exagero na avaliação das suas causas. Não havia crise nenhuma na União Soviética, havia problemas, mas não uma crise…

Mas para a maioria das pessoas é uma evidência de que só uma profunda crise poderia provocar tal catástrofe...

RK – Acho que podemos sintetizar o nosso ponto de vista do seguinte modo: não foi a doença que matou o socialismo mas sim a cura. Ao contrário do que muitos pensam, não havia sinais de uma crise: não havia desemprego, inflação, manifestações, etc.

Mas isto não significa que não houvesse problemas. É claro que os havia, principalmente no plano econômico, muito deles agravados no período de Bréjnev, cuja liderança se caracterizou por uma passividade e falta de vontade para enfrentar os problemas. Neste sentido podemos dizer que houve uma espécie de "estagnação", apesar de não gostarmos desta palavra, já que significa ausência de crescimento, o que não corresponde à verdade.

Os problemas econômicos agravaram-se a partir de que altura?

TK – A taxa de crescimento da economia começou a abrandar a partir da época de Khruchov, passando de 10 a 15 por cento ao ano para cinco, quatro e três por cento. Houve uma clara desaceleração, mas continuou a observar-se um crescimento respeitável segundo os padrões capitalistas, o que permitiu elevar continuamente o nível de vida na União Soviética. Em 1985 o nível de vida tinha atingido o seu ponto máximo.

No plano das nacionalidades, não se observavam conflitos ou contradições nacionais relevantes entre os povos da União Soviética. Havia problemas, dificuldades, mas não uma crise.

No plano internacional, a URSS estava sob pressão do imperialismo norte-americano. A administração Reagan aumentou a pressão militar, econômica e diplomática. Também identificámos problemas no interior do partido que exigiam reformas. Mas a questão principal era outra.

"Só com Gorbatchov a direita triunfou"

Se, como afirmam, o socialismo não estava em crise, qual a origem das reformas destruidoras realizadas no final dos anos 80 na URSS?

TK - Ao longo da história da União Soviética digladiaram-se sempre duas tendências na política soviética: uma ala de direita, que defendia a incorporação de formas e idéias capitalistas, e uma ala de esquerda que apostava na luta de classes, num partido comunista forte e na defesa intransigente das posições da classe operária.

De resto, encontramos estas duas correntes mesmo antes da revolução de Outubro. Os mencheviques, por um lado, e os bolcheviques por outro. Mais tarde esta luta é polarizada por Bukhárin e Stálin, Khruchov e Mólotov, Bréjnev e Andrópov, Gorbatchov e Ligatchov. Toda a história da URSS pode ser vista à luz da luta entre estas duas correntes. No entanto, só com Gorbatchov a ala direita obteve um triunfo completo.

RK – Bréjnev, com a sua política de estabilidade de quadros e o seu receio de fazer ondas, deixou uma direção extremamente envelhecida e permitiu que se agravassem vários problemas na economia e na sociedade.

A carência de alguns produtos, sobretudo os de alta qualidade, o desenvolvimento da "segunda economia", a corrupção de dirigentes do partido, tudo isto desagradava às pessoas. Quando Gorbatchov prometeu resolver estes problemas, quase toda a gente concordou. Parecia que finalmente tinha aparecido alguém com vontade de mudar as coisas para melhor.

Todavia, alguns apontam como causas do colapso a degeneração do partido comunista, o fato de o trabalho coletivo ter sido substituído a dada altura por um pequeno círculo de dirigentes e mesmo por um só dirigente individualmente; a democracia partidária ter sido estrangulada por um sistema burocrático centralizado; a indesejável fusão e confusão entre as estruturas do partido e do Estado; o afastamento do partido das massas; o fracasso da democracia socialista que era apresentada como um tipo superior de democracia. De acordo com esta tese, o povo soviético foi despojado do poder político e isso foi fatal para o socialismo. Concordam?

TK - A visão de que a União Soviética sofria de um déficit democrático e de um excesso de centralização está muito espalhada entre socialistas reformistas, sociais-democratas, historiadores burgueses e mesmo entre alguns comunistas, mas, na nossa opinião, é uma visão errada e exagerada dos problemas da democracia soviética.

Apesar de alguns problemas, a democracia soviética tinha uma grande vitalidade. Cerca de 35 milhões de trabalhadores participavam diretamente no trabalho dos sovietes, que eram instituições de poder que tomavam decisões efectivas, 163 milhões de trabalhadores estavam sindicalizados, o partido tinha 18 milhões de militantes, a democracia tinha outras instituições como as seções de cartas do leitor em todos os jornais, as organizações de mulheres e de jovens.

É verdade que todas estas instituições tinham insuficiências, poderiam funcionar melhor e de forma mais efetiva, mas não é verdade que fossem instituições de fachada.

As pessoas que atacaram o nosso livro acreditam, na sua maioria, que a falta de democracia e o excesso de centralização foram as causas do colapso soviético. Curiosamente, este sempre foi o principal argumento da burguesia para difamar o regime soviético muito antes da chegada de Gorbatchov. Na nossa opinião é incorreto acusar a democracia soviética de ter levado ao colapso.

RK – Muitas dessas críticas radicam na concepção burguesa de democracia. Na verdade a União Soviética sempre foi acusada de não ter uma democracia burguesa, de não ter partidos concorrentes. Todavia, as formas de democracia socialista, sem serem perfeitas, eram sob muitos aspectos muito mais ricas do que a democracia burguesa.

Penso que o recente conflito na Geórgia nos fornece um exemplo a este respeito. Na antiga União Soviética, a Ossétia do Sul era um território autónomo onde as minorias étnicas tinham as suas escolas, língua, cultura.

Após a desagregação da URSS, a "democracia" georgiana aboliu o estatuto de autonomia dos ossetas, o que agravou as tensões e desembocou numa guerra na região.

TK – Houve razões históricas que determinaram que na URSS apenas houvesse um partido. Logo a seguir à revolução os restantes partidos combateram o poder soviético, os socialistas revolucionários abandonaram o governo e tudo isso levou a que apenas ficassem os bolcheviques.

A maioria dos países socialistas europeus tinha vários partidos, embora o papel dirigente do partido da classe operária fosse salvaguardado. A existência de um só partido acentuou a idéia de fusão entre o partido e o Estado, mas não vemos que isso possa ter constituído uma causa do colapso.

Mas as insuficiências da democracia soviética não terão impedido o povo de defender as conquistas revolucionárias, a URSS e o socialismo?

TK – Esse é o principal argumento dos que afirmam que havia um déficit democrático. Porque é que o povo não defendeu o socialismo? Perguntam dando como resposta a falta de democracia e o excesso de centralização.

Em primeiro lugar, não é verdade que não tenha havido resistência. Houve, basta lembrar que, no referendo de 1991, a maioria esmagadora dos soviéticos (75 por cento) votou a favor da manutenção da URSS.

Por outro lado, para percebermos porque é que essa resistência não foi suficientemente forte para derrotar a contra-revolução, temos de ter em conta o seguinte: Gorbatchov e Iákovlev, ao mesmo tempo que prometiam o aperfeiçoamento do socialismo, com mais liberdade e democracia, destruíram num curto espaço de tempo as instituições por meio das quais a base do partido e o povo podiam expressar a sua vontade.

A organização do partido foi desmantelada, os jornais e todos os meios de informação foram entregues a anticomunistas. De repente desapareceram os mecanismos e formas habituais de expressão democrática popular.

Regressando à economia, ficou-nos da perestróika a idéia de que o excesso de centralização, de planificação e de burocracia foram os causadores dos atrasos no desenvolvimento econômico. Alguns acrescentam que houve uma estatização exagerada da economia, que as diferentes formas de propriedade deveriam ter sido mantidas e que o papel do mercado foi claramente subestimado durante o processo de construção do socialismo. Qual é o vosso ponto de vista?

RK – Penso que temos de começar por fazer a seguinte observação que ninguém contesta: a propriedade social dos meios de produção na União Soviética permitiu os mais rápidos ritmos de crescimento industrial jamais registrados em qualquer época da história. Isso ocorreu nos anos 30, mas também a seguir à guerra até meados dos anos 50. Em quatro ou cinco anos, a União Soviética conseguiu recuperar da devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, que deixou em ruínas um terço das cidades e um terço das indústrias.

Por tudo isto, nunca pensámos que a propriedade estatal, a centralização e a planificação pudessem ter causado o colapso. Mas havia algumas questões que precisavam de ser explicadas.

Porque é que o crescimento começou a declinar nos anos 60 e 70. A economia continuava a crescer, mas qual era a razão da desaceleração? Os críticos da planificação centralizada viram aqui a demonstração das suas teses…

Talvez as enormes proporções atingidas pela economia colocassem verdadeiros problemas e dificultassem essa planificação?

RK – Sim, é certo que a expansão da economia tornou a planificação numa tarefa mais complexa. Todavia, a conclusão a que chegámos aponta em sentido contrário, ou seja, foi a erosão da planificação e o florescimento da "segunda economia" que colocaram entraves ao crescimento econômico na URSS.

Não foi portanto a subestimação do papel do mercado, mas antes as medidas tomadas para o seu alargamento que desviaram recursos da economia socialista?

TK - Todas as sociedades socialistas têm mercados. A própria União Soviética sempre teve um mercado para o consumo privado. No entanto, as reformas econômicas de Khruchov não só descentralizaram a planificação como introduziram alguns mecanismos de mercado na economia e formas de concorrência entre as empresas.

As reformas de Kossiguin [primeiro-ministro da URSS entre 1964 e 1980]traduziram-se em cada vez maiores concessões ao modo de pensar capitalista.

Dos cinco institutos mais importantes e influentes de economia política soviéticos, três estavam nas mãos de economistas pró-capitalistas do tipo de Aganbeguian, por exemplo.

Os principais setores da inteliguentsia, incluindo os economistas, exerciam importantes pressões sobre o governo. Este foi um processo que se desenvolveu ao longo de 20 anos, não aconteceu tudo de uma vez.

Para alguns a perestróika tinha boas intenções mas falhou. No vosso livro, afirmam que esta foi a grande oportunidade para as forças anti-socialistas avançarem. Qual foi a responsabilidade e que intenções reais teve Gorbatchov em todo este processo?

TK – Apesar das suas posições oportunistas, não pensamos que Gorbatchov tenha agido conscientemente logo de início para trair o socialismo e restaurar o capitalismo.

Ao contrário de Andrópov, que era profundo e um marxista-leninista genuíno, Gorbatchov era um brilhante ator, mas uma pessoa superficial, sem grande preparação teórica.

Quando se deslocou politicamente para a direita sob a influência de Iákovlev*, descobriu que o imperialismo o aprovava, que os elementos corrompidos do partido concordavam com ele, especialmente aqueles ligados à segunda economia que defendiam o setor privado, e aos poucos foi acelerando as reformas neste sentido.

A dado momento Gorbatchov tomou a decisão consciente de que não era mais um comunista, mas um social-democrata, não acreditava mais na planificação, na propriedade social dos meios de produção, no papel da classe operária, na democracia socialista, queria que a União Soviética se transformasse numa Suécia ou algo parecido.

O oportunismo, o abandono da luta foi um processo gradual que se tornou evidente em 1986. Alguns dirigentes do partido ofereceram determinada resistência, como foi o caso de Ligatchov*, mas mesmo este tinha fraquezas, embora fosse de longe melhor homem do que Gorbatchov. Ligachov foi apanhado de surpresa.

Ele próprio afirmou que havia duas formas de corrupção, uma que há muito todos sabiam que existia, e à qual queriam pôr fim quando assumiram o poder em 1985; e uma outra que surgiu no espaço de um ano e meio como uma forte vaga de pressão, vinda da "segunda economia" e das organizações mafiosas florescentes.

Como puderam esses setores emergir com tal força na sociedade socialista?

TK – A "segunda economia" alcançou uma expressão importante em dois períodos da história da URSS: o primeiro foi durante a Nova Política Econômica (NEP) dos anos 20 que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, sob controlo estatal dentro de determinados limites.

Esta foi uma opção consciente do Estado socialista tomada provisoriamente para fazer face à situação de emergência causada pela guerra civil. Em 1928-29 a NEP foi superada de forma decidida.

No entanto, dirigentes do partido como Bukhárin defenderam a manutenção da NEP apresentando-a como a via mais adequada para alcançar o socialismo. Esta corrente foi derrotada pela maioria do partido liderada por Stálin, que justamente lembrou que a NEP fora definida por Lênin como um recuo necessário, porém temporário. E apostaram na planificação centralizada e na propriedade social dos meios de produção.

Mas este período dos anos 20 ficou marcado não só pelo florescimento do capitalismo e dos setores marginais e criminosos, mas também pelo alastramento de uma ideologia de direita, anti-socialista. Ou seja, podemos ver claramente uma correspondência entre a base material e a ideologia.

O segundo período foi mais prolongado e gradual. Teve início em meados dos anos 50, após a morte de Stálin. Khruchov foi a primeira peça deste quebra-cabeças. Em muitos aspectos, não todos, teve desvios de direita e quando estes foram demasiados houve uma correção. Veio Bréjnev, mas este detestava mudanças, queria estabilidade, e apesar das disputas entre as alas esquerda e direita os problemas continuaram a acumular-se.

"O socialismo é uma construção consciente"

Foi então o acumular de problemas na época de Bréjnev que condicionou as reformas dos anos 80?

TK – Nos anos 80, os problemas eram evidentes para todos, mas a questão-chave que se colocava era qual das duas tendências tradicionais no partido os iria resolver: a tendência de direita ou a tendência de esquerda?…

Infelizmente já conhecemos a resposta…

RK – Mas Bréjnev não teve apenas aspectos negativos. No plano internacional obteve a paridade militar com os Estados Unidos e ajudou os movimentos revolucionários em várias regiões do mundo.

Este esforço no plano militar e no plano da solidariedade internacionalista exigiu importantes recursos que não puderam ser utilizados para suprir necessidades domésticas.

Talvez também por esta razão que, durante este período, se tenha fechado os olhos ao setor privado ilegal que se desenvolvia nas bordas da economia socialista. Esta espécie de "pacto" com a "segunda economia" permitiu o surgimento de uma camada que ficou conhecida como "os milionários de Bréjnev", que eram pessoas que fizeram fortunas através de redes de corrupção toleradas pelo poder.

TK – Bem, trata-se de um setor ilegal, por isso não há números oficiais, o que torna o seu estudo difícil…

RK – Mas é verdade que se trata de um fenômeno ignorado e não reconhecido pela literatura marxista. A "segunda economia" foi sempre vista como um resquício do capitalismo que desapareceria à medida do avanço do socialismo.

Contudo, há alguns estudos que nos mostram que o seu peso estava longe de ser negligenciável. Por exemplo, é interessante comparar o período de Bréjnev com os primeiros meses da direção de Andrópov em termos de processos criminais instruídos por atividades econômicas ilícitas.

Verificamos que nos anos de Bréjnev não houve praticamente condenações pela prática deste tipo de crime, mesmo quando os casos chegaram a ser julgados em tribunal. Com Andrópov esta situação alterou-se radicalmente. Muitas pessoas foram condenadas nesse período.

No vosso livro, não dedicam muito espaço à análise do chamado "relatório secreto" apresentado ao 20.º congresso do PCUS por Khruchov sobre o "culto à personalidade", mas referem a necessidade de reavaliar o período comumente designado por "stalinismo", notando que enquanto tal não for feito, os comunistas continuarão prisioneiros do passado. Querem explicar?

RK – Quando começámos a escrever o livro essa questão colocou-se e tivemos de tomar uma decisão. Decidimos que não iríamos entrar no tema quente de Stálin. Há muitos preconceitos enraizados e, sobretudo, há muitas coisas que não conhecemos suficientemente para podermos desmontar idéias feitas e diariamente repetidas sobre Stálin.

A única coisa que fizemos, ou pelo menos tentámos, foi abrir a porta a este assunto. Nós não temos todas as respostas sobre Stálin e a sua época, e seria um erro pensar que temos. Há muitos aspectos históricos e políticos que precisamos de absorver e compreender.

Contudo, praticamente todas as conquistas do socialismo que enumeram na introdução do livro foram alcançadas em particular durante os anos 30, sob a direção de Stálin…

TK – É um fato, mas tivemos de fazer uma opção entre tratar toda a questão ou apenas o que consideramos ser a questão-chave. Por acaso, a maioria dos ataques ao nosso livro por parte de marxistas ou pseudo-marxistas, sociais-democratas ou comunistas revisionistas centraram-se precisamente na questão de Stálin.

Não contestaram nada do que dissemos sobre Gorbatchov nem sobre a "segunda economia", apenas nos censuraram por sermos demasiado brandos com Stálin e por não termos reconhecido que Stálin era um monstro, um louco, um carniceiro. Esta questão no Partido Comunista dos Estados Unidos é particularmente sensível.

Mas se a tese do vosso livro está correta, então as políticas de Stálin terão sido as mais corretas e as únicas que podiam garantir a construção do socialismo e defender as conquistas revolucionárias.

RK – O ódio a Stálin é tão cego e intenso que alguns críticos do nosso livro dizem que estamos errados e insistem que Stálin foi a causa do colapso da URSS.

Vem a propósito uma reflexão vossa sobre a importância do fator subjetivo no socialismo. Segundo afirmam, o papel dos dirigentes é mais decisivo no socialismo do que no capitalismo. Porquê?

TK – O capitalismo cresce enquanto que o socialismo é construído. No livro utilizamos uma metáfora em que comparamos o capitalismo a uma jangada a descer um rio. As possibilidades de dirigir a jangada são reduzidas, ela é arrastada pela força da corrente e apenas se podem fazer algumas pequenas correções na trajetória.

Nesta metáfora, o socialismo é um avião, o qual apesar de ser um meio de transporte incomparavelmente superior exige ser pilotado por uma equipa bem preparada científica e tecnologicamente, capaz de compreender e aplicar conscientemente as leis da ciência.

Ou seja, apesar de o avião ser um sistema superior é vulnerável num sentido em que a jangada não o é. Isto não significa obviamente que devamos abandonar o avião e voltar à jangada, assim como não podemos voltar ao tempo das cavernas, apesar de as nossas casas poderem ruir.

*Alekssandr Iákovlev — responsável a partir de 1985 pelo departamento de propaganda do PCUS, torna-se membro do CC do PCUS em 1986, responsável pelas questões da ideologia, informação e cultura.

Sobe ao politburo em junho de 1986 e é sob proposta sua que são nomeados os diretores dos principais jornais e revistas do país que passam a defender abertamente posições antisocialistas (os jornais Moskovskie Novosti,Sovietskskaia Kultura, Izvestia; as revistas Ogoniok, Znamia, Novi Mir, entre outros). Faz publicar uma série de romances de escritores dissidentes e anti-soviéticos, bem como cerca de 30 filmes antes proibidos. Em agosto de 1991 anuncia a decisão de abandonar o PCUS.

*Iegor Ligatchov – membro do politburo entre 1985 e 1991, foi um dos impulsionadores da campanha anti-álcool (1985-87) e, mais tarde, assumiu-se como um opositor às reformas de Gorbatchov.

Jornal Avante!

A catarse midiática

Luís Carlos Lopes
25/10/2008

DEBATE ABERTO

 

A cobertura de um fato, escolhido como bombástico, na verdade, se torna parte do mesmo. Hoje, nestes casos, as grandes mídias participam de modo efetivo nos rumos do evento, sobretudo, se ainda não houve um desfecho. Elas interferem no que sucederá e indicam caminhos a serem percorridos, influenciando não só suas audiências como também os que estão diretamente envolvidos.

Data: 22/10/2008

Há um trinômio que se pode observar na pseudoconstrução da realidade atual. Nele, atuam o Estado, a sociedade e as mídias. Esta realidade não é natural, sendo fruto exclusivo da ação humana, mesmo nos seus aspectos mais imateriais. Constróem-se fatos e artefatos, fortemente ancorados nas três forças citadas. O Estado se materializa através dos governos em seus três níveis e seus mil e um aparatos, que servem para manter a ordem e preservar interesses. A sociedade é formada e dividida em classes e grupos socioculturais, que nem sempre têm consciências de si mesmos. As mídias são empresas que vendem um produto imaterial, a publicidade, e dezenas de outros produtos simbólicos que servem para carregar e difundir os artefatos publicitários.
O Estado existe por meio dos seus aparatos jurídicos e políticos e pela ação efetiva dos seus agentes. Estes atuam sem qualquer sincronização obrigatória. Dependendo de seus micropoderes, outorgados por autoridades centrais, basta seguir a orientação geral que vem de cima. Fazendo isto, as forças da ordem estão aparentemente livres de quaisquer responsabilizações pelos seus atos, mesmo que sejam impróprios ou, até mesmo, criminosos. Na outra ponta, os macropoderes se disfarçam através da ação de seus agentes operacionais. Se algo der errado, o problema é deles. Mandam, tentando não responder, publicamente, pelo que determinam em sigilo.
A sociedade real é algo que se tenta tornar invisível. Como isto não é possível, os seus desníveis e incongruências aparecem com muita força na construção citada. Não dá, por exemplo, para esconder a miséria das periferias e favelas das metrópoles brasileiras. Na pseudoconstrução citada, abre-se uma janela para problemas efetivos vividos por pessoais reais. Observando-a, com atenção, podem-se ver as suas contradições tanto do ponto de vista material, como no que se refere à subjetividade dos envolvidos.
As mídias, isto é, os meios técnicos e humanos de comunicação, são os principais operadores da construção daquilo que o tecido social imagina como o real. Trabalham com o Estado e com a sociedade destacando, a partir de suas óticas e interesses, o que se devem mostrar como exemplos do mundo da vida. O espetáculo, como já apontava Guy Debord há quarenta anos, é o seu principal artefato.
Destacar um episódio, explorar as emoções do público e levar a audiência ao desespero consistem em técnicas de há muito conhecidas. A catarse, isto é, a paralisação da inteligência através do choque emocional, funciona por toda parte. Em países de baixa escolaridade formal e real, elevado grau de desinteresse político popular e de uma cultura de resignação frente à dominação é bem mais fácil conseguir que o grande público se renda e acredite quase piamente na mercadoria simbólica que lhe é imposta. O espetáculo substitui a vida tal como ela é de fato. Para funcionar bem, tem que ser verossímil, isto é, tocar as pessoas no que elas vivem diariamente.
A cobertura de um fato, escolhido como bombástico, na verdade, se torna parte do mesmo. Hoje, nestes casos, as grandes mídias participam de modo efetivo nos rumos do evento, sobretudo, se ainda não houve um desfecho. Elas interferem no que sucederá e indicam caminhos a serem percorridos, atingindo e influenciando não só suas audiências como também os que estão diretamente envolvidos. As mídias tornam-se sujeitos participantes do processo, sendo, por isto, responsabilizáveis pelo seu desdobramento.
A dialética midiática tem um poder jamais visto no mundo da vida. Nestas situações mais dramáticas, as mídias podem se tornar, em alguns momentos cruciais, os seus principais sujeitos. Elas tomam decisões ou influenciam fortemente o que os que representam o Estado e a sociedade, de certo modo, ditando o que vão ou devem fazer. Concluído o episódio, ele vai sendo abandonado progressivamente. Já não mais interessa. Agora, o que importa é esperar o próximo ou a próxima oportunidade, para se repetir a mesma lógica insana e difusora da ignorância, porém bastante lucrativa. O oportunismo midiático não tem senso de medida ou de tamanho.
No último episódio mais rumoroso, causa espanto que o sexismo dos personagens não tenha sido mencionado. As mulheres, no Brasil, mesmo ainda quando ainda são crianças, tem o seu destino traçado. Não podem ser donas de suas vidas e nem tomar decisões, sem fortes riscos. O caso do ônibus 174 acabou com a morte oficial da refém Geísa, já esquecida pelas mídias. Agora, tem-se na Eloá, outro exemplo do desprezo pela vida humana, principalmente daqueles mais oprimidos e mais fragilizados pelas circunstâncias. Não raro, seus algozes imediatos são gente igual ou próxima socialmente e culturalmente.
Assassinos de carne e osso tiraram a vida de Geísa e de Eloá. Entretanto, estas mortes devem nos fazer refletir sobre a fragilidade da condição de ser uma mulher brasileira, sobretudo, no que se refere às mais pobres e oprimidas. Quando elas poderão ser donas dos seus corpos, dizer o que realmente querem e escolher os seus próprios caminhos? Por pouco, a Nayara não foi engordar as mesmas estatísticas.
No pano de fundo de todos estes espetáculos, não é difícil ver toneladas de ignorâncias e de atos prepotentes dos envolvidos em posição de poder. Na verdade, os assassinos de ambas não são somente os que apertaram os gatilhos de suas armas. A complexa trama político-social-repressiva do Brasil explica a possibilidade de tais crimes. Cada um quer dar a sua parte na construção do espetáculo. Muitos ambicionam a fama e a distinção, nem que para isto tenham que destruir suas próprias vidas ou a de outros.
O imenso sexismo de nossa sociedade, que permite e naturaliza o amadurecimento sexual precoce de gente tão jovem é um dos vetores a ser considerado. Outro, é o que se refere à exclusão das maiorias do saber básico contemporâneo. Não se está criando apenas excluídos sócio-econômicos, mas também aqueles que podem ter acesso aos mais modernos meios de comunicação, sem acessar a informações básicas que os permitam pensar e se proteger da barbárie.
Pensar não é repetir o que as mídias vomitam. Pensar é se interrogar sobre a realidade envolvente. É preciso aprender a fazê-lo. A imensa maioria dos seres humanos nasce com a possibilidade de usar sua massa encefálica para pensar. Ninguém nasce para ter o seu cérebro transpassado por uma bala. O que importa é vencer as dificuldades e barreiras impostas, e alcançar uma consciência mais crítica do real.

Wednesday, October 08, 2008

Der Spiegel: o que você poderia comprar com US$ 700 bi?

 

O Congresso dos EUA deu outra facada nos cidadãos do país ao aprovar na última sexta-feira (3) o gigantesco pacote de ajuda aos bancos. Mas de quanto dinheiro está se falando? A revista alemã Der Spiegel (O Espelho), em seu site,  dá uma idéia do que alguém poderia fazer com tal quantia.

Quanto dinheiro significa isto? Muitas pessoas ficam confusas ao verem números com mais de seis zeros. A dádiva proposta pelo governo Bush-Paulson e aprovada sexta-feira pelo Congresso dos EUA – para evitar bancarrotas em série tão grandes como a do banco Lehman Brothers – tem 11 zeros. Este montante, além de salvar banqueiros insolventes, poderia ser utilizado em muitas outras coisas. A revista Spiegel Online elaborou uma lista de possibilidades. Eis algumas delas:

1: Pagar os salários de 22 milhões de pessoas
U$ 700 bilhões seriam suficientes para pagar o salário médio anual a 22 milhões de pessoas nos Estados Unidos. De acordo com o Departamento do Trabalho dos EUA, o pagamento médio por uma semana de trabalho foi de US$ 612 em agosto passado.

2: Estabelecer cobertura de saúde universal
Os EUA poderiam finalmente estabelecer seguro de saúde universal, um objetivo que até agora foi constantemente evitado pelos políticos. O governo poderia financiar até seis anos de seguro de saúde para cada um de todos os cidadãos estadunidenses.

3: Comprar 47 sistemas de comunicações para serviços médicos de emergência
Washington poderia comprar um sistema de comunicações uniforme para todos os serviços de emergência médica do país, que é urgentemente necessário, mais de 47 vezes. Estimativas estabelecem o preço de um tal sistema em torno dos US$15 bilhões.

4: Construir 100 barreiras ao redor de Nova Orleans
O projeto para fortalecer as barreiras em torno de Nova Orleans poderia realmente ser pago mais de uma centena de vezes. Desde o furacão Katrina, o governo gastou cerca de US$7 bilhões em tais esforços.

5: Comprar duas Dinamarcas
US$700 bilhões é suficiente para financiar as economias de países inteiros. A soma considerada pelo Congresso é mais do que o dobro do produto interno da Dinamarca, o qual em 2007 foi cerca de US$ 312 bilhões.

6: Financiar todo o orçamento nacional da Alemanha durante mais de um ano
Projecções estabelecem o orçamento nacional da Alemanha para 2009 em 288 bilhões de euros, os quais, às atuais taxas de câmbio, resultam em cerca de US$ 420 bilhões. Com esta soma de dinheiro seria possível financiar o país durante 1,6 anos.

7: Combater a pobreza na África durante 10 anos
Este montante de dinheiro poderia financiar programas da ONU para combater a fome e pobreza na África durante 10 anos. De acordo com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, o continente precisa de US$72 bilhões por ano de ajuda ao desenvolvimento.

8: Financiar todas as operações de inteligência dos EUA durante 15 anos
O governo dos EUA poderia financiar todas as suas 16 agências de inteligência/espionagem durante mais de 15 anos. Atualmente o custo anual somado das mesmas, incluindo 100 mil empregados, sistemas de comunicações, equipamento de reconhecimento e armas totaliza cerca de US$44 bilhões.

9: Lançar múltiplos "New Deals"
Franklin Dellano Roosevelt ficaria verde de inveja. Seu "New Deal" da década de 1930, inigualável até agora como programa de crescimento, poderia ser financiado muitas vezes mais. Segundo o Wall Street Journal, os investimento de infraestrutura do programa custariam cerca de US$ 250 bilhões em dólares de hoje. Estes investimentos ajudaram a construir ou renovar 8.000 parques, 40 mil edifícios públicos e 71 mil escolas.

10: Salvar a Terra (ao invés de bancos)
Ao invés de ajudar bancos, US$700 bilhões poderiam ser utilizados para salvar o ambiente. Esta, pelo menos, é a opinião de M. A. Sanjayan, cientista principal do grupo de proteção ambiental The Nature Conservancy. Embora os dados dos institutos de investigação variem consideravelmente quanto à quantia precisa que seria necessária para por o ambiente de novo numa base saudável, todos concordam em que US$ 700 bilhões dava para um longo caminho.

11: Permanecer no Afeganistão e no Iraque por mais sete anos
Os números de Washington mostram quão absurdamente caras podem ser as guerras. Desde a invasão do Iraque, os EUA gastaram aproximadamente US$ 648 bilhões na guerra. A níveis atuais de gastos, US$ 700 bilhões seriam suficiente para continuar as guerras no Iraque e no Afeganistão durante mais sete anos.

12: Voar quatro vezes para a Lua, ida e volta
A quantia também seria suficiente para financiar quatro missões diferentes de vôos tripulados para a Lua. O programa "Apolo" da NASA, durante a década de 1960, custou cerca de US$164 bilhões em dólares de hoje. O dinheiro também poderia comprar sete estações internacionais no espaço.

O original encontra-se no site da Der Spiegel

Luciano Martins Costa: A queda do muro de Nova York

 

Os jornais brasileiros dão grande destaque ao movimento conservador dos investidores internacionais, que retiraram ativos das bolsas de valores e, no dizer de um colunista da Folha de S.Paulo, voltam a colocar o dinheiro embaixo do colchão.

O Globo anuncia em manchete que Brasil e Rússia perdem mais com a fuga dos investidores, que buscam lugares mais seguros para seu dinheiro.

Mas nenhum deles descreve o que pôde ser testemunhado por quem estava nas ruas do distrito financeiro da Nova York na segunda-feira, 12 de setembro de 2008.

Para quem andava por Wall Street na segunda-feira, o clima era de fim de mundo, com multidões aglomeradas diante dos painéis eletrônicos da Bolsa de Nova York e das corretoras, e disputando impressos produzidos às pressas e distribuídos de mão em mão.

A impressão que se tem é que os jornais relatam apenas o que aparece nas telas dos sites de análise financeira, e se esquecem de observar o mundo real.

O prêmio Nobel de Economia Josef Stiglitz, entrevistado na edição de quinta-feira (18) pelo Estado de S.Paulo, afirma que a queda de Wall Street significa para o fundamentalismo de mercado o que representou a queda do muro de Berlim para as economias socialistas do Leste Europeu, em 9 de novembro de 1989.

Para os distraídos, interessante lembrar que "wall street" quer dizer a "rua do muro".

Mas a imprensa ainda se nega a admitir que a atual crise financeira pode significar muito mais do que uma turbulência passageira.

Estado do mundo

O Globo é o único jornal a destacar na primeira página o significado histórico da estatização, pelo governo americano, da empresa de seguros AIG, questionando se a decisão do Banco Central americano de nacionalizar grandes empresas do setor financeiro não seria a inauguração do socialismo do século 21.

Interessante lembrar que no dia 31 de julho passado, quando o presidente venezuelano Hugo Chávez anunciou a compra do Banco da Venezuela para transformá-lo numa espécie de Caixa Econômica Federal, para financiar projetos sociais, a imprensa procurou desmoralizá-lo, afirmando que ele promovia o retrocesso da Venezuela ao socialismo.

Quando o governo Bush usa dinheiro público para salvar empresas privadas, está agindo em defesa da economia global.

Diversos analistas, não apenas na imprensa brasileira, destacam movimentos que consideram sinais de insanidade do mercado, como o aumento de mais de 9% na cotação do dólar-ouro na Bolsa Mercantil de Nova York.

Mas os elementos de uma análise mais profunda do que acontece com a economia globalizada ainda não permitem ao leitor não especializado e não contaminado por pressupostos ideológicos entender o estado do mundo.

A imprensa pode fazer melhor.

Luciano Martins Costa é jornalista e escritor.

Observatório da Imprensa