Thursday, May 02, 2013

O suposto “mensalão” e o falso “domínio do fato” na AP 470


O suposto “mensalão” e o falso “domínio do fato” na AP 470

O jurista Izaac Pereira Dutra Filho é um dos mais cultos e sagazes homens do Direito que o nosso país tem hoje em dia. Não é apenas a nossa opinião, mas a de renomados professores que consultamos a respeito da mesma questão abordada no texto de Pereira Dutra Filho que hoje publicamos: a confusão feita na Ação Penal 470 – o processo do suposto "mensalão" - em torno da chamada "teoria do domínio do fato".

Destacamos, por nossa conta – ou seja, independente do autor do texto – que a "teoria do domínio do fato" tem duas versões. A primeira, abertamente nazista, foi elaborada por Hans Welzel em 1939. A segunda, foi desenvolvida por Claus Roxin. Estranhamente, para aqueles pouco afeitos aos problemas teóricos – isto é, filosófico-formais – do Direito, este segundo desenvolvimento tem um sinal ideológico oposto ao do primeiro: foi a necessidade de punição jurídica aos nazistas que fez com que Roxin fizesse o seu aporte.

Alguns autores expressaram esse problema histórico, transportando-o - em nossa opinião, equivocadamente - para a própria teoria ou para o seu desdobramento/desenvolvimento. Por exemplo: "A noção de domínio do fato é contemporânea ao finalismo de Hans Welzel (1939), que propugnava ser autor, nos crimes dolosos, aquele que detém o controle final do fato. (…) Antes de Claus Roxin, porém, não havia propriamente uma teoria, senão um cipoal de postulados de conteúdos amiúde contraditórios e raquíticos, que seriam sistematizados pelo catedrático de Munique", etc. (cf. Guilherme Guimarães Feliciano, "Autoria e participação delitiva. Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva". Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 745, 19 jul. 2005).

Roxin foi o autor mais citado no STF por ocasião do julgamento da AP 470. Observa Pereira Dutra Filho: "nada estranho, infelizmente, que, nos últimos tempos o STF abandone a lei e crie categorias jurídicas a bel-prazer. No entanto, fazê-lo em nome de Roxin foi ainda mais despropositado".

Pois, justiça se lhe faça (!), Claus Roxin jamais pretendeu que sua teoria substituísse as provas na condenação dos réus. Comenta o jurista brasileiro: "Não deixa de ser irônico, dado o seu prestígio internacional e, em particular no Brasil, que Claus Roxin seja citado muitas vezes para fundamentar o afastamento da aplicação da lei penal brasileira. Roxin não propõe um direito penal contra legem, ou seja, um direito penal que contrarie a lei penal alemã. Não pretendemos (…) fazer a defesa das teses de Roxin, estamos apenas realçando sua fidelidade à lei. No caso dele, da lei alemã. No nosso, deve, ou pelo menos deveria ser, a lei brasileira".

Pois, a tragédia, do ponto de vista da filosofia do Direito, nota Pereira Dutra, é que, no Brasil, a teoria do domínio do fato é dispensável, pois não existem no arcabouço jurídico brasileiro os problemas que essa teoria se propôs a resolver no seu correspondente alemão.

O que não impediu, certamente, que expressões retiradas do "Tratado" de Roxin fossem invocadas a torto e a direito, no STF, como "verdadeiras palavras mágicas", apesar de sua ausência de significado no caso concreto (exceto, acrescentamos nós, o significado de condenar sem provas, o significado de substituir a lei e o Direito pela mera perseguição política).

No fundo, como diz Pereira Dutra, "trata-se da singela questão de que, em uma Democracia, o Parlamento faz a lei e o Judiciário a aplica. Vivemos no Brasil um momento em que abundam teorias e trabalhos acadêmicos para que juízes não se pautem mais pela lei".

Assim, não espanta que o Direito brasileiro tenha sido abandonado – substituído por uma ficção de Direito alemão que não existe aqui nem na Alemanha. Nas palavras de Pereira Dutra: "Causa espanto a falta de referência ao nosso Código Penal (CP) no julgamento do ‘mensalão’. Nosso CP disciplina de forma diferente do CP alemão a matéria do concurso de pessoas. No entanto, ele disciplina. Não temos que importar o direito penal alemão para substituir nossa disciplina legal. Não é correto invocar teorias jurídicas para modificar a disciplina legal pátria, muito menos em temas de Direito penal, onde o princípio da legalidade avulta em importância".

A questão, lembra o nosso jurista, fora já resolvida por um de seus mais ilustres antecessores, o ministro Nelson Hungria, em seus "Comentários ao Código Penal".

"A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito."

C.L.

IZAAC PEREIRA DUTRA FILHO (1)*

1. O presente texto pretende demonstrar que, no julgamento do chamado "mensalão", o STF cometeu inúmeros equívocos ao manipular a chamada teoria do domínio do fato.

2. Expressões como domínio do fato (Tatherrschaft), domínio funcional do fato (funktionelle Tatherrschaft), domínio final do fato (finale Tatherrschat), homem de trás (Hintermann), autor de escritório (Schreibtischtäter) aparatos organizados de poder (organisatorische Machtapparate) foram invocadas como solução mágica para as dificuldades probatórias e teóricas surgidas no julgamento.

3. Com base no próprio Claus Roxin, que foi o autor mais citado no julgamento, esclarecemos o alcance de todos esses institutos. Servimo-nos dos Tomos I e II do Tratado de ROXIN. O primeiro na edição de 2006 e o segundo na edição de 2003 (2), as mais recentes.

4. A tese central aqui defendida é a seguinte: ao contrário do que foi feito no julgamento do "mensalão", a teoria do domínio do fato, tanto em ROXIN, como entre aqueles que primeiramente começaram a construir a base dessa teoria, não é um critério de afirmação da responsabilidade penal de alguém. Tal teoria somente entra em cena depois de afirmada a responsabilidade penal com base nas provas e nos critérios de imputação. Vencida essa primeira etapa, ela ingressa para esclarecer se o imputado será punido como autor ou como partícipe. E aqui entra a questão central da importância da teoria do domínio do fato no direito penal alemão. Lá, quando se afirma que alguém é partícipe, necessariamente ele terá direito a uma redução da pena. Se se afirma que o imputado é autor, não terá direito a redução da pena. Essa redução é significativa e pode mudar substancialmente a situação do acusado, por exemplo, em um assassinato, onde a pena é de prisão perpétua. Em ROXIN, "domínio do fato" é um critério da afirmação da autoria e de diferenciação da participação. Sabemos que no nosso Código Penal, partícipe ou executor são somente formas de adequação típica. Entre nós, nada impede que um partícipe tenha pena maior do que a pena do próprio executor e este, por sua vez, tenha pena menor do que a de um partícipe. Do ponto de vista do nosso ordenamento jurídico, a teoria do domínio do fato carece de importância, se for considerada em sua real significação e não da forma distorcida como se deu no julgamento da ação penal 470.

5. Repetindo, a teoria do domínio do fato não veio para responder se uma pessoa será ou não responsabilizada penalmente. A afirmação dessa responsabilidade penal deve ser extraída dos sistemas de imputação já conhecidos: causalismo, finalismo ou funcionalismo. É sintomático que ROXIN trate a teoria do domínio do fato somente no Tomo II do seu Tratado, dedicado às formas especiais de aparecimento do fato punível. Os critérios de imputação da responsabilidade penal são tratados no Tomo I, dedicado aos fundamentos e estrutura do fato punível.

6. Para começar, é preciso entender a disciplina do assunto no Código Penal (CP) alemão. Na lei alemã, aquele que induz outrem a entrar em uma residência e dali subtrair bens móveis é INDUTOR (Anstifter) de um crime de furto; o induzido que entra na residência e dali subtrai os bens é AUTOR (Täter) de um crime de furto; e um terceiro que tenha emprestado a gazua para a prática do crime é um PARTÍCIPE (Gehilfe) do crime de furto (3). Nesse exemplo, de acordo com disposição expressa do CP alemão, somente o partícipe que emprestou a gazua terá direito a uma redução da pena. Por outro lado, o indutor, embora com rigor técnico seja partícipe, não tem direito à referida redução da pena. E o autor, evidentemente, também não terá direito a redução da pena.

7. No exemplo do furto, somente é autor aquele que entrou na residência e dali subtraiu os bens móveis (praticou o fato por si mesmo "selbst begeht"). No entanto, o CP alemão prevê, ao lado da autoria imediata (praticar o fato por si mesmo, ou seja, em linguagem simples, colocar a mão na massa e executar sozinho o tipo penal) mais duas formas de autoria; portanto, sem direito à redução de pena. As duas são nossas conhecidas: autoria mediata e coautoria. O autor mediato se serve de uma pessoa isenta de responsabilidade penal para cometer o crime, uma criança, um doente mental etc. O autor mediato comete o fato punível através de outrem (die Straftat durch einen anderen begeht). Aqui, na autoria mediata, o executor é um mero instrumento (Werkzeug) da vontade do autor. Já na coautoria, o fato é cometido em comum por mais de uma pessoa (begehen mehrere die Straftat gemeinschftlich). Na coautoria, apesar de vários os intervenientes, todos estão em pé de igualdade, seja do ponto de vista subjetivo (não existe preponderância da vontade criminosa de um sobre a vontade dos demais), seja do ponto de vista objetivo (todos colocam a mão na massa). Se dois homens, cada um com uma arma, ameaçam uma mulher e os dois realizam o ato sexual, são coautores do crime de estupro; ainda são coautores, se apenas um deles ameaça com a arma e somente o outro realiza o ato sexual. Nessa última situação, ambos colocam a mão na massa, haja vista que o tipo penal do crime de estupro contém as duas condutas: grave ameaça e ato sexual.

8. Portanto, o CP alemão define três formas de autoria para as quais não caberá redução da pena. Traz ainda um conceito de participação, para o qual não caberá a referida redução da pena que é a indução (Anstifung) (4). No CP alemão, todos os demais partícipes têm direito à redução da pena. No citado exemplo de ROXIN, é o caso daquele que emprestou a gazua. O indutor, a rigor, também é partícipe, ele não entra nas três formas de autoria acima indicadas. O CP alemão não diz que o indutor é autor, diz que ele é punido como se autor fosse. Em síntese, apesar de ser um partícipe, com relação ao indutor, a lei alemã, de forma excepcional, não permite a redução da pena.

8.1. Síntese do assunto na lei alemã. A autoria assume três modalidades: a.1) autoria imediata, quem executa o crime por si mesmo e sozinho coloca a mão na massa: efetua o disparo, coloca o veneno, desfere as facadas, oferece ou promete a vantagem ao funcionário público etc; a.2) autoria mediata, o autor se vale de uma pessoa que executa o crime como mero instrumento (o executor atua sem consciência do que faz ou atua mediante coação); a.3) coautoria, todos os intervenientes praticam o fato de forma comum. Para todas essas três formas de autoria, a lei não admite a referida redução da pena. A participação (Teilnahme) assume, por sua vez, duas formas: b.1) a indução (Anstifung) e b.2) qualquer outra forma de auxílio (Beihilfe). O primeiro partícipe (indutor) não tem direito à redução da pena; enquanto o segundo partícipe tem direto à redução da pena.

8.2. Cabe adiantar uma explicação. Tanto o autor mediato (aquele que faz incidir em erro ou coage o executor) quanto o indutor poderiam ser considerados homens de trás (Hintermann), mas essa expressão deve ser reservada somente para o autor mediato. O fato é que o indutor tem que realizar um processo de convencimento. Depois de convencido, o induzido passa a agir por conta própria, ele não é um mero instrumento da vontade do homem de trás, como seria o caso daquele que falsifica um documento porque o homem de trás aponta uma arma para sua cabeça. Ou seja, homem de trás (Hintermann) é uma expressão que deve ser reservada para os casos de autoria mediata. Como adiante veremos, ROXIN irá propor a expressão "autor de escritório" (Schreibtischtäter) como uma espécie do gênero Hintermann (homem de trás). Tanto o Hintermann como Schreibtischtäter se referem somente aos casos em que o executor age como mero instrumento. Essas duas expressões foram lançadas de forma totalmente assistemática no julgamento da ação penal 470.

8.2.1. Embora tanto o indutor como o autor mediato não tenham direito à redução de pena, essa distinção é fundamental para a compreensão do tema e ganhará relevo quando da análise dos chamados aparatos organizados de poder.

9. Portanto, já entendemos a disciplina do assunto no CP alemão. Como de praxe, no entanto, isso não basta. A regra de impedir a redução da pena para quem seja autor, em alguns casos concretos, se mostra muito rigorosa.

10. Vamos a um caso clássico do direito alemão. No ano de 1940, uma mulher, para ocultar o que ela entendia ser a desonra de uma gravidez fora das regras da sociedade de então, ao acabar de dar à luz, insta, induz sua irmã a matar o recém-nascido. Atendendo ao pedido da parturiente, a irmã teria afogado a criança em uma banheira (Badewannen-fall - caso da banheira). A irmã que teria afogado a criança pratica o fato ela mesma (selbst begeht), portanto seria autora e não teria direito à redução de pena que, à época, era a pena de morte. No CP alemão atual, 1975, a pena é de prisão perpétua para esses casos (5).

11. Para mitigar o rigor da lei em casos como o da banheira, surgiu na Alemanha, já no final do século XIX, a chamada teoria subjetiva da autoria. Como o próprio nome diz, ela contrapõe ao dado objetivo (no nosso exemplo, afogar a criança) um dado subjetivo (ao afogar a criança, a autora não queria matá-la por vontade própria, em interesse próprio, mas para atender ao pedido da irmã). Com esse dado subjetivo, poder-se-ia, e, de fato, foi assim julgado, considerar aquela que teria afogado a criança não como autora e sim como partícipe, passando a ter direito a uma substancial atenuação da pena.

12. Segundo ROXIN, em sua primeira variante, a teoria subjetiva adota o critério da vontade de autor. Autor seria aquele que age com "vontade de autor" („Täterwillen" [animus auctoris]) e o partícipe, seria quem age com "vontade de partícipe" („Teilnehmerwillen" [animus socci]).

13. Uma segunda variante da teoria subjetiva é a teoria do interesse. Autor seria quem agisse com interesse próprio no fato e partícipe seria aquele que agisse em interesse de outrem, ou seja, sem interesse próprio. Foi essa segunda vertente a usada pelo Tribunal do Império no caso da banheira para, não obstante a autoria direta (autoria imediata com o ato de afogar a criança), mitigar a reprimenda e afastar a pena de morte. Entendeu-se que aquela que afogou a criança não agiu em interesse próprio, mas no interesse da parturiente.

14. Já a jurisprudência do Tribunal Federal Alemão (que substituiu o Tribunal do Império) é oscilante, como afirma ROXIN. Embora em geral entenda que quem realiza o tipo com as próprias mãos seja autor e não mero partícipe (6), há exceções. De grande repercussão foi o chamado caso Staschynkij. Ele seria um agente soviético que, a mando do serviço secreto soviético, teria matado dois exilados que se encontravam na então Alemanha Ocidental. O tribunal o considerou apenas partícipe. O mesmo tratamento alguns tribunais alemães adotaram em julgamentos de criminosos de guerra nazistas. Considerou-se que nazistas executores de crimes violentos teriam agido em interesse alheio e subordinados à vontade alheia.

15. É dentro dessa problemática que ROXIN retrabalha a teoria do domínio do fato para se contrapor a essas concepções subjetivas (teoria da vontade de autor e teoria do interesse). Assim como suas rivais, a teoria do domínio do fato não surge para fundamentar a imputação da responsabilidade penal. Em linguagem mais simples, ela não surge para afirmar se alguém é culpado ou inocente, como equivocadamente fez o STF. Ela serve somente para dizer, depois de analisada a prova e constatada a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, se o culpado será tratado como autor ou partícipe. Ela não tem nada a ver com a análise da prova nem com a afirmação da existência de responsabilidade penal.

Notas

1 Izaac Pereira Dutra Filho, Promotor de Justiça em Brasília/DF e Especialista em Ciências Penais (izaacpdf@gmail.com); com a colaboração de Alfredo de Pádua, advogado em Goiânia/GO (alfredodepadua@hotmail.com). Autorizada reprodução e divulgação, desde que mantida a fidelidade ao texto e a indicação da autoria e colaboração.

2 Strafrecht, Allgemeiner Teil, Band I, 4., vollständig neue bearbeitete Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2006; Band II, 2003. Infelizmente são comuns distorções de pensamentos de autores estrangeiros, em particular do próprio ROXIN. Assim ao final consta um anexo, na sequência exata do texto no Tratado, sem excluir ou acrescentar nada, com seis parágrafos que nos dão a ideia exata do alcance da formulação de ROXIN quanto à teoria do domínio do fato. Tendo em vista a presença de pessoas com domínio do idioma alemão no meio jurídico, poder-se-á, quem entender que nossa tradução não está correta, corrigi-la. As críticas serão bem vindas. Por outro lado, com a transcrição direta, poupamo-nos de reproduzir os artigos do Código penal alemão, referentes ao tema da autoria e da participação, haja vista que ROXIN já o faz nos trechos do anexo. ANOTAMOS que as transcrições do texto original têm apenas a finalidade de comprovar nossa fidelidade ao pensamento de ROXIN. Portanto, sua leitura não é necessária para o entendimento do presente texto.

3 Esse exemplo com o tipo penal do furto é de ROXIN e consta no anexo.

4 Pode soar estranho que o indutor seja tecnicamente partícipe, dado que, na consciência comum a conduta de quem induz outrem a praticar um crime, a conduta do mandante, não raro, é mais reprovável do que a própria execução. Acontece que reprovabilidade de uma conduta nasce, tecnicamente, da conjugação da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. Em um direito penal do fato e não das subjetividades, o dado primordial é o fato, o acontecimento. Antes de serem considerados os aspectos pessoais, as motivações, a conduta de vida de cada interveniente, deve ser constatada a existência de um fato. A própria palavra alemã que ainda nos dias atuais designa o que nos chamamos de tipo, que é palavra Tatbestand, foi tradução inicial que os alemães fizeram da palavra latina corpus delicti. Diante do corpo de delito, do resultado objetivamente, materialmente considerado, por exemplo, o cadáver, a conduta de efetuar os disparos ou desfechar os golpes com a faca é o dado mais relevante. Ter contratado o matador de aluguel é algo secundário, do ponto de vista estritamente objetivo. Assim sendo, por outro lado, também na consciência comum, na linguagem corrente, "matar alguém" é algo diferente de "mandar matar alguém". De fato, o nosso tipo do homicídio não tipifica "mandar matar alguém", tipifica somente "matar alguém". Assim, entre nós, a conduta do mandante não encontra adequação típica direta, imediata no art. 121 do nosso CP. Sua tipicidade decorre da existência de um tipo de extensão que é o art. 29 que diz que "todo aquele que concorre para o crime, incide nas penas a ele cominadas". É nesse aspecto técnico, que fica claro no nosso CP, em que reside a pertinência da afirmação de que a conduta do mandante é acessória em relação à conduta do executor e, por conseguinte, o mandante é partícipe. Infelizmente não é somente para leigos que essas palavras são importantes. Na literatura jurídico-penal atual, no Brasil, reina a mais completa confusão. Autores de renome se levantam contra o que lhes parece ser um absurdo considerar que o mandante seria "mero" partícipe. No CP alemão, em que o partícipe tem necessariamente uma pena menor em relação ao autor, o adjetivo mero tem sentido. Entre nós ser participe ou ser autor (a rigor o nosso CP usa a palavra "executor") é somente questão de adequação típica. Não se percebe que, por trás dessas sutilezas técnicas, existe uma opção legal pelo direito do fato em detrimento do direito penal de autor. O juiz penal somente deveria analisar a culpabilidade (categoria jurídica do crime na qual ingressam com maior relevo os dados pessoais de cada um dos intervenientes) depois de afirmada a existência de um tipo, de um fato, de um Tatbestand. Na teoria jurídica do crime, as palavras têm profundo componente ideológico. De forma recorrente, o CP alemão, por exemplo, deixa de lado as palavras "tipo legal" ou "crime", palavras de caráter abstrato, e usa a expressão "fato punível" (Straftat). O próprio Ernst Beling, na sua famosa obra de 1906, em que concebe o tipo como algo abstrato (ele deixou de ver o cadáver para ver o homicídio), optou por permanecer com a palavra anterior (Tatbestand) e se limitou a indicar, entre parêntesis, o que seria a expressão abstrata: typus. Também aqui se trata, na escolha das palavras, de um reforço ideológico do direito penal do fato. No que diz respeito à tipicidade, que é a porta de entrada da responsabilidade penal, nosso CP e o CP alemão, assim como um direito penal do fato, dão primazia o homem da frente e não ao homem de trás. De forma simples, podemos dizer que o direito penal do fato realiza o postulado Iluminista de que ninguém deve ser punido pelo que pensa ou pela sua conduta de vida, mas, somente, pelo que fez, pelo fato que realizou. Essa concretização dos ideais Iluministas deveria ser também a tarefa de uma teoria jurídica do crime correta. Uma teoria do crime que somente busca interpretar, integrar e não reescrever a lei. O que temos assistido é a invocação de teorias jurídicas "pós-modernas", que levam a que o Juiz julgue de acordo com sua particular visão de mundo, de acordo com seus valores pessoais, em detrimento da lei. É forçoso reconhecer, entretanto, que, na maioria das vezes, o que se passa com essas teorias "pós-modernas" é simplesmente uma incompreensão de penalistas famosos em outros países.

5 Apesar de penas diferentes, a disciplina da autoria e da participação no atual CP alemão é, essencialmente, a mesma do Código penal do Império de 1871.

6 Nunca é demais reafirmar que o adjetivo "mero" tem sentido no direito penal alemão onde o partícipe recebe, necessariamente, uma pena atenuada. Na sistemática do nosso CP, falar em "mero" partícipe é uma impropriedade. De acordo com a nossa disciplina legal, o partícipe pode receber pena maior do que o executor. Diz o art. 62 do nosso CP que a pena será agravada em relação ao agente que "executa o crime ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa". Por outro lado, nosso art. 29 afirma: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade". Entre nós, ao contrário do CP alemão, o peso da intervenção, da contribuição, objetivamente analisada para a realização do evento (emprestar a arma versus efetuar os disparos) não vincula de forma necessária a pena. É bom lembrar também que a redução da pena no CP alemão não é pequena. Dispõe o art. 49, I do CP alemão que a pena de prisão perpétua pode ser reduzida a uma pena de 3 (três) anos de prisão. Podemos imaginar as batalhas homéricas travadas entre acusação e defesa sobre autoria e participação. Daí a importância de teorias como a do domínio do fato entre eles.

Em ROXIN, domínio do fato é gênero do qual são espécies o domínio da ação (autoria direta, imediata), o domínio da vontade (autoria mediata) e o domínio funcional do fato (coautoria). Vemos que essas expressões, ao contrário do que se deu no julgamento do "mensalão", têm significados bastante concretos



16. ROXIN é claro: Hoje essencialmente duas concepções disputam acerca da delimitação entre autoria e participação: a teoria do domínio do fato, dominante na literatura1, e a teoria subjetiva da participação2. (grifo no original) p. 10.

17. ROXIN expõe o que seria o critério do domínio do fato:

Tem o domínio do fato e é autor quem, na realização do delito, através da sua influência decisiva sobre o acontecimento surge como peça chave, como figura central p. 14. (grifo no original)3. P.14

18. Registramos que não se trata de ser figura central na realização do tipo penal abstrato (homicídio, por exemplo), mas figura central para o evento, o acontecimento (Geschehen). Trata-se de ser figura central no acontecimento concreto: efetuar os disparos, afogar a criança na banheira, colocar o veneno etc.

19. A concretização desse critério reitor é feita em primeiro lugar pelo próprio legislador. Assim, para ROXIN, as três formas de autoria definidas no CP alemão vão corresponder às três formas de domínio do fato. A saber.

19.1. Na autoria imediata, direta e individual (selbst begeht), o domínio do fato (Tatherrschaft) surge como o domínio da ação (Handlungsherrschaft). Aquele que entra na residência e dali subtrai objetos tem o domínio do fato, por ter o domínio da ação.

19.2. Na autoria mediata, o autor tem domínio do fato por ter domínio da vontade (ele domina a vontade daquele que é um mero instrumento, por exemplo, usar para cometer um crime um doente mental que não tem capacidade de entendimento e de determinação). Aqui, na autoria mediata, o domínio do fato toma a forma de domínio da vontade (Willensherrschaft).

19.3. Na coautoria, o domínio do fato surge como domínio funcional (funktionelle Tatherrschaft). No exemplo acima de coautoria (um ameaça e outro pratica o ato sexual), o fato total, o acontecer total não é dominado por nenhum dos dois isoladamente, cada um domina a sua parte. No entanto, o fato total (estupro), sem um deles, não acontece. Ou seja, a empreitada criminosa não funciona. Da mesma forma que um assalto só funciona se cada um dos dois assaltantes fizer a sua parte, um ameaça as pessoas com uma arma enquanto o outro, desarmado, subtrai os valores. Cada um deles tem o domínio somente da sua ação, da sua parte (ameaçar ou subtrair). Pode-se considerar, entretanto, que cada um tem o domínio funcional do fato total. Sem um deles, o crime não funciona como planejado, não acontece.

20. Em síntese, em ROXIN, domínio do fato é gênero do qual são espécies o domínio da ação (autoria direta, imediata), o domínio da vontade (autoria mediata) e o domínio funcional do fato (coautoria). Vemos que essas expressões, ao contrário do que se deu no julgamento do "mensalão", têm significados bastante concretos. Elas se referem aos dispositivos legais do CP alemão. E, longe de remédio para todos os males, significam que aquele que tem o domínio da ação, ou o domínio da vontade ou o domínio funcional do fato são autores e não meros partícipes, o que, ainda que sem essa nomenclatura, já foi dito pelo CP alemão4. Com essa formulação, ROXIN vai refutar as soluções do Tribunal do Império e do Tribunal Federal para casos como os da banheira.

21. Cabe agora um parênteses para a análise de outra expressão ventilada no julgamento. Trata-se da expressão domínio final do fato (finale Tatherrschaft) criada por Hans Welzel em 1939. Mesmo com todo o subjetivismo que caracteriza o pensamento finalista de WELZEL, o sentido desse conceito não tem relação com a forma extremamente vaga como foi invocada no julgamento. ROXIN cita WELZEL: "Não uma vaga vontade de autor, senão um efetivo (wirkliche) domínio final do fato5 é o critério essencial do domínio do fato". E ainda "Assim possui o domínio do fato aquele que de forma final e consciente conduz sua resolução de vontade à execução". Portanto, em WELZEL, não basta "resolução de vontade" ela tem que se materializar em execução, realização, implementação (Durchführung).

21.1. Ainda assim, ROXIN critica o subjetivismo de WELZEL e anota que seu conceito não contribui para uma efetiva diferenciação entre autoria, indução e participação. Não estranha, portanto, a crítica de ROXIN ao extremo subjetivismo do julgamento da ação penal 470 quando de sua recente visita ao Brasil. O STF foi muito mais subjetivista que WELZEL6.

21.2. De fato, nem Welzel é tão subjetivo quanto foi o STF. A ação é uma síntese inseparável de momentos objetivos e subjetivos[...]7. Por isso o problema da coautoria somente pode ser discernido por uma indagação cuidadosa de todo o complô delitivo e do grau de participação objetiva e subjetiva de todos os partícipes, mas não através de fórmulas com base em lemas (grifamos) 8

21.3. Os lemas 9 que Welzel critica são exatamente os conceitos subjetivistas de autoria como "vontade de autor", "querer o fato como próprio" etc. Welzel entende acertada uma decisão do Tribunal Federal vazada nos termos a seguir.

O giro corrente, coautor quem quer o fato como próprio, é equivocado. Esta direção de vontade não é um "fato" interior que o juiz dos fatos possa comprovar de modo que tenha caráter obrigatório. Trata-se, antes de tudo, de um juízo valorativo 10. Por isso resulta um ponto de apoio essencial a determinação de que, em que medida, o partícipe codomina o transcurso do acontecer, de maneira que também em forma considerável processo e resultado dependem de sua vontade (em negrito, grifo nosso; itálico e aspas, no original) 11

21.4. Fica evidente que, também em Welzel, domínio do fato não diz respeito à teoria das provas e não é critério de imputação.

22. Vamos agora procurar entender outra expressão que surgiu no julgamento da Ação Penal 470, os "aparatos organizados de poder" (organisatorische Machtapparate).

22.1. Como vimos, em ROXIN, nos casos de autoria mediata (o homem de trás usa o homem da frente como mero instrumento) o domínio do fato toma o aspecto de domínio da vontade. Exemplos de autoria mediata: aquele que coage alguém, ou utiliza um doente mental, ou induz alguém a erro.12 Para estas situações, como visto, o CP alemão utiliza a expressão "wer die Straftat durch einen anderen begeht" (quem comete o fato punível através de outrem). Ou seja, o executor é um simples instrumento (Werkzeug) da vontade do homem de trás (Hintermann), daí a expressão domínio da vontade (Willensherrschaft). Em todas essas situações de autoria mediata, o homem de trás é considerado pelo CP alemão como autor e não mero partícipe, e, sendo autor, não terá direito à redução de pena. Em se tratando de homicídio, ele terá a pena de prisão perpétua, nem mais, nem menos 13.

22.2. Sabemos ainda que o indutor, apesar de tecnicamente ser partícipe, por força de previsão expressa do CP alemão, recebe a pena de autor, ou seja, não tem direito à redução da pena. Portanto, o indutor não tem como escapar, em caso de assassinato, da prisão perpétua.

22.3. A relação de indução exige alguém que induza e que alguém que seja induzido. Ainda que seja por telefone, por e-mail, por interposta pessoa ou pessoalmente, o indutor tem que ter contato com a pessoa alvo de seu intento de indução. Por outro lado, nunca se pode garantir que aquele a ser induzido aceitará a empreitada. Mesmo um matador de aluguel poderá não concordar com o valor da paga ou pode simplesmente entender que a empreitada é muito arriscada. É por isso que tem sentido falar-se em tentativa de indução. O CP alemão não pune a mera tentativa de auxílio material em nenhum crime, mas pune a tentativa de indução nos crimes mais graves, não a punindo nos crimes menos graves14. Na lei penal alemã, aquele que envia o veneno pelo correio para que terceira pessoa o coloque na refeição da vítima, não será punido se a correspondência for interceptada pela polícia. Já aquele que tenta induzir alguém a assassinar a vítima é punido, mesmo que o induzido não aceite a proposta15. No nosso CP, nenhum dos dois é punido16.

22.4. Essa relação entre indutor e induzido não existe quando se trata de aparatos organizados de poder. Quando o chefe de um aparato de poder resolve que alguém deva ser assassinado, ele não precisa induzir alguém. A própria estrutura de poder se encarrega da execução do crime. O executor aqui, como bem salientou o ministro Ricardo Lewandowski, é um anônimo, uma pessoa sem identidade, sem RG.

22.5. Dentro de uma estrutura organizada de poder, por um lado, não há relação de indução; por outro lado, o chefão não pratica o crime por si mesmo e nem age em coautoria. Além disso, não está enquadrado nos casos clássicos de autoria mediata. Dessa forma, aquele que, dentro de uma estrutura hierarquizada, dá a ordem para o crime, teria, a princípio, direito à redução da pena.

22.6. ROXIN resolve esse problema transformando essa situação do aparato organizado de poder em uma nova modalidade de autoria mediata, em nova modalidade de domínio da vontade. O que temos aqui, segundo ROXIN é "Die Willensherrschat kraft organisatorischer Machtapparate (O domínio da vontade por força de aparatos organizados de poder)". Lembro que "domínio da vontade" é expressão reservada por ROXIN para os casos de autoria mediata. É disso simplesmente que se trata. Não temos com o conceito de aparatos organizados de poder um remédio para as encruzilhadas da prova, muito menos uma responsabilidade penal objetiva ou pela conduta de vida.

22.6.1. No nosso exemplo, o chefão não será responsabilizado pelo homicídio pelo simples fato de estar no topo da estrutura de poder. Como disse ROXIN, em entrevista concedida no Brasil e fazendo analogia ao caso FUJIMORI, o chefão tem que dar a ordem, e, consequentemente, existir prova no processo de que a ordem fora dada.

22.7. Tendo em vista a relevância desse aspecto, traduzimos um trecho:

O ’domínio organizacional’ é uma nova e independente forma de autoria mediata desenvolvida primeiramente por mim em 196317.

22.7.1. É interessante notar que a teoria foi criada em uma época em que nazistas ainda eram julgados na Alemanha. Com essa teoria se fechava o espaço para que mandantes de crimes nazistas viessem a ser tratados como meros partícipes, diante de eventual ausência de uma relação de indução entre mandante e executor. É bom ainda lembrar que, ao fundamentar autoria como o domínio do fato, ROXIN também se chocava com as concessões feitas pelos tribunais, que então consideravam executores de crimes do nazismo como meros partícipes, com base nas acimas referidas teorias do interesse e da vontade de autor. Para ROXIN, quem executa o fato tem o domínio da ação (Handlungsherrschaft), que é uma modalidade de domínio do fato, e, portanto, não se pode falar em participação e em redução da pena. E com a nova figura do aparato organizado de poder, quem mandou executar o crime, apesar de não ser indutor e de não está enquadrado nas modalidades até então admitidas de autoria mediata, passa a não poder ser beneficiado com redução da pena.

22.7.2. Referindo-se às formas de autoria mediata, diz ROXIN:

"Pode-se coagir o executor, pode-se enganá-lo ou, e essa era a nova ideia, servir-se de um aparato de poder que assegura, sem coação ou engano, o cumprimento da ordem, pois o aparato, enquanto tal, assegura a execução"18.

22.7.2.1 Aqui, ROXIN mostra como a situação do aparato de poder se diferencia das demais formas de autoria mediata, a coação e o engano19.

22.7.3. No trecho que agora trago à colação, ROXIN marca a diferença entre o aparato de poder e a indução (Anstiftung)20:

"O exemplo histórico que tinha em mente quando do desenvolvimento dessa forma de autoria mediata, era a tirania da nacional socialismo. Quando Hitler, Himmler ou Eichmann (...) ordenavam um assassinato podiam estar seguros de sua realização, porque – ao contrário do que se passa em uma indução – a eventual recusa por parte daquele que é instado a executar o fato não conduz a não realização do fato. O fato pode ser realizado por outro21. Com isso, autor mediato, na minha concepção, é todo aquele que tem à sua disposição a alavanca da engrenagem de um aparato de poder – ou detém um degrau da hierarquia – e através de uma instrução ou ordem pode praticar fatos puníveis com relação aos quais a individualidade do executor não é levada em consideração."

Notas

1 Anoto que é dominante na literatura, mas não na jurisprudência que, ainda hoje, é oscilante, como afirma ROXIN.

2 Heute streiten im wesentlichen nur noch zwei Auffassungen um die Abgrenzung von Täterschaft und Teilnahme: die in der Literatur herrschende Tatherrschaftslehre und die subjektive Teilnahmetheorie p. 10 (grifo no original).

3 Die Tatherrschaft hat und Täter ist, wer bei der Deliktsverwicklichung durch seinen maâgeblichen Einfluâ auf das Geschehen als Schlüsselfigur, als Zentralgestalt erscheint.

4 A expressão "domínio funcional" constou na própria denúncia nos seguintes termos: "Com a base probatória colhida, pode-se afirmar que José Genoíno, até pelo cargo partidário ocupado, era o interlocutor político visível da organização criminosa, contando com o auxílio direto de Sílvio Pereira, cuja função primordial na quadrilha era tratar de cargos a serem ocupados no Governo Federal. Delúbio Soares, por sua vez, era o principal elo com as demais ramificações operacionais da quadrilha (Marcos Valério e Rural) repassando as decisões adotadas pelo núcleo central. Tudo sob as ordens do denunciado José Dirceu, que tinha o domínio funcional de todos os crimes perpetrados, caracterizando-se, em arremate, como o chefe do organograma delituoso".

5 Nicht ein vager Täterwille, sondern die wikliche finale Tatherrschaft ist das wesentliche Kriteriun der Tatherrschaft.

6 A relação do finalismo de WELZEL com o direito penal de autor do nazismo é inquestionável: "É interessante notar, como o faz Monika Frommel, a coincidência que se formara entre a teoria final da ação (de WELZEL), com seu conceito de injusto pessoal, e a teoria do tipo de autor, bem como a mesma preocupação eticizante que se agregava à norma penal e a substituição do conceito de bem jurídico pelo de valores ético-sociais... A subjetivação do injusto, na forma de injusto pessoal, passa a valer, por isso, como tipo de autor..." (Teoria do Injusto Penal, Juarez Tavares, 3ª edição, Del Rey, p. 152).

7 Derecho penal Aleman, Hans Welzel, Editorial Juridica do Chile, 4ª edição (correspondente à 11ª edição original de 1969), p. 132

8 Idem p.133

9 Alguns críticos do julgamento do STF afirmaram que o tribunal incorreu em responsabilidades penal objetiva. Acreditamos que não. O que aconteceu foi mais grave. A responsabilidade penal objetiva é aquela que prescinde do dolo (vontade de praticar o fato) e da culpa (negligência ao realizar um fato a princípio lícito), mas ela não prescinde de conduta, nexo e resultado. O que o STF fez foi exatamente o que Welzel, mesmo com todo seu subjetivismo, censura: julgar com base em lemas. E, nesse caso, ao lado de lemas com alguma pretensão e aparência jurídicas (as distorções em tono da teoria do domínio do fato0, lemas de natureza totalmente política. Foi triste ver na nossa corte maior, como alguns votos, em quase sua inteireza, se transformaram em verdadeiros libelos de uma guerra santa contra a corrupção. Também não se tratou de um julgamento pela condução de vida, pois, em relação a alguns dos condenados, vários juízes tiveram que admitir ausência de dados que apontassem uma evolução patrimonial ilícita.

10 Idem p. 133

11 Idem p. 133

12 Por exemplo, o homem de trás, sabendo que arma está carregada, estimula outrem a efetuar um disparo fazendo-o acreditar que a arma está descarregada e que tudo não passa de uma brincadeira).

13 O rigor das penas no CP alemão e a possibilidade de redução da pena para o partícipe faz com que essa discussão entre ser autor ou partícipe ganhe na Alemanha uma importância que entre nós não existe. Pois que, no nosso CP, o Juiz pode aplicar pena maior para o partícipe e pena menor para o executor e vice-versa. Além do mais, sabemos que, entre nós, seja em razão da disciplina legal seja por ausência de provas quanto as circunstâncias do nosso art. 59 que poderiam majorar a pena, a pena final aplicada, em regra, fica na pena mínima ou bem próxima dela para todos os envolvidos.

14 Como já vimos, no nosso CP, mesmo que se trate de um crime hediondo, a tentativa de indução não é punida se não houver início de execução.

15 Nesse caso a pena, obrigatoriamente, será atenuada em relação à pena do crime consumado.

16 "O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega ao menos, a ser tentado"

17 Die "Organisationsherrchaft" ist als eigenständige und "neue" Form der mittelbaren Täterschat zuerst von mir im Jahre 1963 entwickelt worden" p. 46.

18 Man kann den Ausführenden zwingen; mas kann ihn täuschen; oder man kann - und dies war der neue Gedanke – über einen Machtapparat gebieten, der die Ausführung von Befehlen auch ohne Zwang und Täuschung sichert, weil der Apparat als solchen den Vollzug gewährleistet p. 46.

19 Para ROXIN essas duas figuras, coação e engano, contemplam todas as possibilidades de autoria mediata. Para ele, no caso de ser usada como instrumento uma pessoa inimputável, não se dá uma terceira modalidade de autoria mediata. Trata-se, neste caso, de uma combinação, um misto de coação e engano.

20 Das historische Beispel, das mir beider Entwicklung dieser Form der mittelbaren Täterschaft von Augen stand, war die nationalsozialistische Gewaltherrschaft. Wenn Hitler oder Himmler oder Eichmann (…) einen Totungsbefehl gaben, konnten sie seiner Ausführung sicher sein, weil– anders als bei der Anstifung - die etwaige Weigerung eines zur Ausführung Aufgeforderten nicht bewirken konnte, daâ die angeordenete Tat unterblieb. Sie wurde dann von einem anderen vorgenommen. Mittelbarer Täter ist dabei nach meiner Konzeption jeder, der and den Schalthebeln eines Machtapparat sitzt - einerlei, auf welcher Stufe der Hierarchie – und durch eine Anweisung Straftaten bewirken kann, bei denen es auf die Individualität der Ausführenden nicht ankommt. […] Es ist also die "Fungibilität", die unbegrenzte Ersetzbarbkeit des unmigttelbaren Täters, die Hintermann die Tatausführung garantiert und ihn das Gescheh en beherrschen läât. Der unmittelbar Handelnde ist nur ein auswechselbares "Rädchen" im Getrieb des Machtapparates. Dies ändert nichts daran, daâ derjenige, der die Tötung am Ende mit eigener Hand ausführt, als unmittelbarer Täter sgtrafbar ist p. 47.

21 Pode-se objetar que também no caso de indução a recusa de um primeiro induzido não impede que o indutor procure outro. É verdade. No entanto, nesse caso, o indutor terá que iniciar um novo processo de indução, levando inclusive em consideração características da personalidade do novo alvo da tentativa de indução e sem prévia garantia de sucesso (na indução, o homem de trás não tem o domínio da vontade do homem de frente). Em se tratando de aparato organizado de poder, o emissor da ordem está livre dessa tarefa que fica a cargo da estrutura de poder. Na indução ao contrário, dependendo da particularidade da situação, o induzido pode até ser insubstituível e com sua recusa, o crime não será realizado. No caso da banheira, por exemplo, no caso de recusa daquela que afoga a criança, talvez somente restasse à parturiente praticar o crime por si mesma ou até mesmo não praticá-lo.


Causa espanto a falta de referência ao nosso Código Penal no julgamento do "mensalão". Nosso CP disciplina de forma diferente do CP alemão a matéria do concurso de pessoas. No entanto, ele disciplina. Não temos que importar o direito penal alemão para substituir nossa disciplina legal. Não é correto invocar teorias jurídicas para modificar a disciplina legal pátria, muito menos em temas de Direito penal, onde o princípio da legalidade avulta em importância


22.7.3.1. Na citada entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Roxin deixou clara essa questão e também a tese central deste texto. De viva voz, ele espanca qualquer dúvida. A teoria do domínio do fato não cria critérios de responsabilidade penal. Ela, depois de afirmada a responsabilidade penal, diferencia entre aqueles que deverão responder como autores daqueles que deverão responder como partícipes. Se alguém vai responder por crime, ao contrário do que fez o STF, é uma questão que refoge à teoria do domínio do fato.

Folha – O que o levou ao estudo da teoria do domínio do fato?

Claus Roxin – O que me perturbava eram os crimes do nacional socialismo. Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito, tem de responder como autor e não só como partícipe, como queria a doutrina da época (negrito nosso).1

22.7.3.2. Os ministros do STF inverteram a equação e realizaram um julgamento com base em lemas. Não basta ter à sua disposição a alavanca de toda a engrenagem e não basta que detenha determinada posição na hierarquia. É necessário que o homem de trás dê o comando, emita a ordem ou instrução (Anweisung). Consequentemente, do ponto de vista processual, é necessária a prova de que o "comando para que se execute um delito" foi emitido.

22.7.4. Quase finalizando, cito um trecho que mais uma vez confirma a correção da posição adotada no julgamento pelo Ministro LEWANDOWSKI.

Por conseguinte a ‘Fungibilidade’, a ilimitada possibilidade de substituição do autor imediato, é o que garante ao homem de trás a realização do fato e o permite dominar o evento 2 (grifo no original).

22.7.5. É a essa nova figura de homem de trás, essa nova modalidade de autoria mediata, que se verifica no âmbito do aparato organizado de poder, que, segundo ROXIN, deve referir a expressão "autor de escritório" (Schreibtischtäter).

Dado que a autoria imediata do executor e a autoria mediata do homem de trás se baseiam em pressupostos diferentes - a do primeiro, sobre a sua própria atuação; e a do segundo sobre a direção do aparato – elas podem, tanto do ponto de vista lógico como teleológico, existir perfeitamente lado a lado, não obstante opinião em sentido contrário. A forma descrita de autoria mediata é a expressão jurídica adequada para o fenômeno do ‘autor de escritório’ (...) 3

23. Mesmo quem não pôde acompanhar todo o julgamento, percebeu a abundância como as expressões homem de trás e autor de escritório foram pronunciadas. Nada estranho, infelizmente, que, nos últimos tempos o STF abandone a lei e crie categorias jurídicas a bel-prazer. No entanto, fazê-lo em nome de ROXIN foi ainda mais despropositado. Homem de trás em ROXIN refere casos de autoria mediata em que o executor é um mero instrumento, atua por coação ou erro. Em nenhum momento da acusação, foram relatadas ações que teriam sido praticadas por coação ou por erro. Com a expressão autor de escritório, ROXIN de fato entende haver uma nova modalidade de homem de trás, uma modalidade de autoria mediata na qual não existe coação ou erro. Mas aqui o executor faz parte de uma engrenagem, de um aparato organizado de poder, dentro do qual sua personalidade, sua individualidade não entra em consideração. Tanto é assim que, em ROXIN, se o aparato necessitar de um executor com qualidades especiais, não existirá mais autoria mediata e autor de escritório. Por exemplo, não existe autoria mediata se a estrutura organizacional necessitar para a execução de um crime de uma pessoa que seja especialista em explosivos. Da mesma forma, não haverá autoria mediata e homem de trás (aqui na modalidade "autor de escritório") se o aparato necessitar de alguém que esteja disposto a sacrificar sua vida para cometer o crime (homens-bomba). Nessas situações, não basta ao homem de trás acionar a alavanca da engrenagem para a garantia da execução do crime.

23.1. Acreditamos ter conseguido mostrar o real e muito mais comedido significado das expressões que surgiram no julgamento da ação penal 470 como verdadeiras palavras mágicas 4. No entanto, achamos muito importante uma última consideração. Ainda que aqui não se trate de abordar todos os aspectos do problema. Trata-se da singela questão de que, em uma Democracia, o Parlamento faz a lei e o Judiciário a aplica. Vivemos no Brasil um momento em que abundam teorias e trabalhos acadêmicos para que juízes não se pautem mais pela lei.

23.2. Causa espanto a falta de referência ao nosso Código Penal no julgamento do "mensalão". Nosso CP disciplina de forma diferente do CP alemão a matéria do concurso de pessoas. No entanto, ele disciplina. Não temos que importar o direito penal alemão para substituir nossa disciplina legal. Não é correto invocar teorias jurídicas para modificar a disciplina legal pátria, muito menos em temas de Direito penal, onde o princípio da legalidade avulta em importância.

24. Não deixa de ser irônico, dado o seu prestígio internacional e, em particular no Brasil, que Claus Roxin seja citado muitas vezes para fundamentar o afastamento da aplicação da lei penal brasileira. ROXIN não propõe um direito penal contra legem, ou seja, um direito penal que contrarie a lei penal alemã.

24.1. Em nenhum momento da formulação da sua teoria do domínio do fato, ROXIN se choca com a disciplina legal do CP alemão. Pelo contrário, com a teoria do domínio do fato, ele fundamenta uma crítica a decisões dos tribunais alemães que amenizavam a responsabilidade penal dos nazistas, deixando de aplicar a lei em sua literalidade.

24.2. Segundo ROXIN, de um lado, o nazista que executou o crime, por ter o domínio da ação, é autor e, como tal, não poderia ser beneficiado com a redução de pena.

24.3. Por outro lado, com o conceito da estrutura organizada de poder, o nazista que deu a ordem é um autor mediato e como tal não teria direito à redução da pena.

24.3.1. Poder-se-ia imaginar que no âmbito da estrutura organizada de poder, ROXIN estaria inovando em relação à disciplina legal. Cremos que não. ROXIN trata o crime praticado no âmbito de uma estrutura organizada de Poder como modalidade de autoria mediata. Ora, as figuras concretas da autoria mediata não são disciplinadas no CP alemão e nem no nosso CP. Trata-se de criação da teoria jurídica. Nesse caso, uma teoria jurídica legítima que preenche o vazio da lei, sem alterá-la. Para os casos de autoria mediata, o CP alemão se limita a dizer que é autor mediato "quem comete o fato punível através de outrem" (wer die Straftat durch einen anderen begeht). Assim como nos casos do uso de um doente mental, de uma criança, de alguém que está induzido a erro, de alguém que age sob coação, se entende que existe prática do crime "através de outrem", também tem sentido dizer que no âmbito de aparato organizado de poder, o homem de trás pratica o crime através de outrem 5.

25. Não pretendemos com tudo que acabamos de dizer fazer a defesa das teses de ROXIN, estamos apenas realçando sua fidelidade à lei. No caso dele, da lei alemã. No nosso, deve, ou pelo menos deveria ser, a lei brasileira.

25.1. E, para que não haja dúvida sobre tal fidelidade à lei, e ainda como alerta ao ativismo judicial, transcrevemos a seguir trecho no qual ROXIN critica a solução dos tribunais à margem do CP alemão em casos como os da banheira. Antes, reiteramos que o art. 211 do CP alemão é o que prevê a prisão perpétua para os casos de assassinato (Mord), que é uma figura típica que muito se assemelha ao nosso homicídio qualificado.

"Os limites do dogmaticamente admissível são ultrapassados quando, por razões político-criminais, se elege uma solução para ludibriar uma finalidade legislativa, ainda que seja pelas razões mais louváveis. Um conhecido exemplo dessa situação é a rigidez da pena com que se castiga o assassinato (art. 211), que os tribunais consideram (com razão) que em alguns casos é demasiadamente rigorosa e politico-criminalmente equivocada. E, em função disso, os tribunais têm interpretado a lei (arts. 25-27)6 considerando somente como participação em que pese ter cometido o assassinato com as próprias mãos e assim poder aplicar uma pena atenuada (art.27, II). Com isso se chega sem dúvida a resultado desejável, mas é dogmaticamente incorreto, uma vez que quem "pratica por si mesmo" o fato é autor não somente segundo o teor literal do art. 25, I, senão também segundo o sentido da autoria como tipicidade. A ilegal transformação em uma participação supõe uma correção definitiva da (incorreta) decisão sobre o marco penal adotada no art. 211 pelo legislador, correção que está vedada ao Juiz. Em caso como esse à dogmática só resta o recurso de apelar ao legislador. E a solução adotada posteriormente (...) de acudir ao marco penal atenuado do art. 49, I, 1 ante a falta de proporcionalidade da pena de prisão perpétua, que excede à medida da culpabilidade, também está exposta a similares reparos; pois, ainda no caso hipotético de que a pena de prisão perpétua fosse inconstitucional, o juiz não pode usurpar o lugar do legislador 7 (grifamos)."

26. Nessa época de ativismo judicial antidemocrático em que o STF se arvora no direito de, a pretexto de interpretar a Constituição, reescrevê-la, finalizamos lembrando que, cada um sendo fiel a lei penal do país, ROXIN está muito próximo de Nelson Hungria que lecionava:

"A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito." 8

Brasília/Goiânia, 20 de fevereiro de 2013.

NOTAS

1 http://www1.folha.uol. com.br/poder/118372 (acesso no dia 22/2/2013)

2 Es ist also die "Fungibilität", die unbegrenzte Ersetzbarbkeit des unmigttelbaren Täters, die Hintermann die Tatausführung garantiert und ihn das Geschehen beherrschen läât p.47

3 Da die unmittelbare Täterschaft des Ausführenden und die mittelbare des Hintermannes auf unterschiedlichen Voraussetzungen beruhen - die eine auf der Eingenhändigkeit, die andere auf der Steuerung des Apparates – können sie logisch und teleologisch entgegen einer verbreiteten Meinung durchaus nebeneinander bestehen. Die geschilderte Erscheinungsform des mittelbaren Täters ist der juristisch adäquate Ausdruck für das Phänomen des "Schreibtischtäters" (…) p. 47.

4 Após a divulgação da entrevista citada, algumas vozes ponderaram que a teoria do domínio do fato não teria tido importância no julgamento e que haveria outros elementos para a condenação. Não foi o que aconteceu e qualquer um que tenha assistido algumas das sessões do STF o percebeu. Para espancar qualquer dúvida, após o julgamento, o representante do Ministério Público com atuação no feito concedeu uma entrevista ao mesmo período na qual demonstrou o peso que teve no decisum a teoria do domínio do fato. Referindo-se a José Dirceu: "Aí vem a teoria do domínio do fato para dizer que, como essas provas indicam que ele se encontrava numa posição de liderança nesse sistema criminoso então é possível, sim, responsabilizá-lo a despeito da inexistência de prova direta" htpp://www1.folha. uol.com.br/poder1212583 (acesso em 27/2/2013).

5 Se ROXIN comete alguma incoerência não é em relação à lei, mas em relação a sua própria formulação. Poder-se-ia objetar que é incoerente considerar o fato praticado no âmbito de aparato organizado de poder como modalidade de autoria mediata, pois, segundo o próprio ROXIN, nos casos de autoria mediata, o domínio do fato toma a forma de domínio da vontade. A fungibilidade do autor imediato, do executor, não o converte em simples instrumento da vontade do autor de escritório. Ele tem plena consciência dos seus atos e, em regra, não age coagido. Ele aceita, voluntariamente, ser uma peça de toda a engrenagem. De qualquer forma, a intenção aqui não é refutar ou aderir ao pensamento de ROXIN, mas demonstrar o completo desacerto com que o STF manipulou a teoria do domínio do fato. Por outro lado, cabe reafirmar a fidelidade de ROXIN à lei escrita alemã, sua fidelidade ao princípio da legalidade. Por um lado, Roxin reconhece que a concepção mecanicista do juiz como simples "boca de lei" (Montesquieu) é impraticável. Por outro lado, no entanto, Roxin afirma que o sentido literal possível na linguagem corrente é o limite da interpretação judicial (Der mögliche umganssprachliche Wortsinn als Auslegungsgrenze). Afirma Roxin: "Pelo contrário, uma aplicação do Direito à margem do marco da regulação legal (praeter legem), uma interpretação que não esteja coberta pelo sentido literal possível de um preceito penal, constitui uma analogia fundamentadora da pena e, portanto, é inadmissível". Verbis: Dagegen ist eine Rechtsfindung auBerhalb dês gesetzlichen Regelungsrahmens (praeter legem). D.h.eine Interpretation, die durch den möglichen Wortsinn einer Strafvorschrift nicht mehr gedeckt ist, eine strafbegründende Analogie und damit unzulässig" (Tomo I, p. 150). Obs. Optamos para a tradução do termo Rechtsfindung, pela expressão "aplicação do direito", mas também são encontradas "hermenêutica jurídica", "heurística jurídica" ou simplesmente "veredito" e "aplicação legal". Podemos concluir que esse Roxin tão invocado no Brasil para que juízes deixem de decidir de acordo com a lei e decidam de acordo com sua própria visão de mundo, sua própria ideologia, simplesmente não existe.

6 Trata-se dos artigos referentes à autoria (imediata, mediata, coautoria), indução e participação.

7 Die Grenze des dogmatisch Zulässigen wird demgegenüber dort überschritten, wo eine Lösung aus – sei es auch anerkenneswerten – kriminlapolitischen Gründen gewählt wird, um eine als verfehlt erkannte gesetzgeberische Zielsetzung zu unterlaufen. Ein bekanntes Beispiel dafür ist die Starrheit der für den Mord (§ 211) angedrohten lebenslänglichen Freiheiststrafe. Sie wird (zu Recht!) von den Gerichten in manchen Fällen als zu hart und als kriminalpolitisch verfehlt empfunden. Sie haben deshalb das Gesetz (§§ 25-27) bisweilen so ausgelegt, dass sie auch bei eigenhändigen Mord nur eine Beihilfe annahme, um ein milderen Strafrahmen (§ 27 II) anwenden zu können. Das führt zwar zu einem erwünschten Ergebnis, ist aber dogmatisch falsch. Denn wer eine Tat „selbst... begeht", ist nicht nur nach dem Wortlaut des § 25, I, sondern auch dem Sinn der Täterschaft als Tatbestandsmäâigkeit Täter. Die gesetzwidrige Umdeutung in eine Beihilfe läut auf eine Korretur der in § 211 vom Gesetzgeber getroffenen (unrichtigen) Strafrahmenentscheidung hinaus, die dem Richter verwehrt ist. In einem solchen Fall bleibt der Dogmatik nur de Appell an den Gesetzgeber. Auch die von BGHSt 30, 105 ff., später gewählt Lösung, bei einer das Schuldmaâ übersteigenden Unverhältnismäâigkeit der lebenslangen Freiheitsstrafe auf den milderen Strafrahmen des § 49 I 1 auszuweichen, ist ähnlichen Bedenken ausgesetzt. Denn selbst bei einer etwa anzunehmenden Verfassungswidrigkeit lebenslänglicher Bestrafung darf der Richter nicht durch eigenmächtige Festsetzung neuer Strafrahmen die Stelle des Gesetzgebers usurpieren. Die richtige Lösung hätte darin gelegen, den Tatbestand des § 211 in einer dem Schuldprinzip entsprechenden Weise einengend auszulegen. Tomo I, p. 230.

8 Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo I, Forense, Rio de Janeiro, 1958, p. 13.

* Promotor de Justiça em Brasília/DF e Especialista em Ciências Penais, com a colaboração de Alfredo de Pádua, advogado em Goiânia/GO


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Wednesday, April 24, 2013

Jornal Hora do PovoO suposto “mensalão” e o falso “domínio do fato” na AP 470

O suposto “mensalão” e o falso “domínio do fato” na AP 470 (1)

O jurista Izaac Pereira Dutra Filho é um dos mais cultos e sagazes homens do Direito que o nosso país tem hoje em dia. Não é apenas a nossa opinião, mas a de renomados professores que consultamos a respeito da mesma questão abordada no texto de Pereira Dutra Filho que hoje publicamos: a confusão feita na Ação Penal 470 – o processo do suposto "mensalão" - em torno da chamada "teoria do domínio do fato".
Destacamos, por nossa conta – ou seja, independente do autor do texto – que a "teoria do domínio do fato" tem duas versões. A primeira, abertamente nazista, foi elaborada por Hans Welzel em 1939. A segunda, foi desenvolvida por Claus Roxin. Estranhamente, para aqueles pouco afeitos aos problemas teóricos – isto é, filosófico-formais – do Direito, este segundo desenvolvimento tem um sinal ideológico oposto ao do primeiro: foi a necessidade de punição jurídica aos nazistas que fez com que Roxin fizesse o seu aporte.
Alguns autores expressaram esse problema histórico, transportando-o - em nossa opinião, equivocadamente - para a própria teoria ou para o seu desdobramento/desenvolvimento. Por exemplo: "A noção de domínio do fato é contemporânea ao finalismo de Hans Welzel (1939), que propugnava ser autor, nos crimes dolosos, aquele que detém o controle final do fato. (…) Antes de Claus Roxin, porém, não havia propriamente uma teoria, senão um cipoal de postulados de conteúdos amiúde contraditórios e raquíticos, que seriam sistematizados pelo catedrático de Munique", etc. (cf. Guilherme Guimarães Feliciano, "Autoria e participação delitiva. Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva". Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 745, 19 jul. 2005).
Roxin foi o autor mais citado no STF por ocasião do julgamento da AP 470. Observa Pereira Dutra Filho: "nada estranho, infelizmente, que, nos últimos tempos o STF abandone a lei e crie categorias jurídicas a bel-prazer. No entanto, fazê-lo em nome de Roxin foi ainda mais despropositado".
Pois, justiça se lhe faça (!), Claus Roxin jamais pretendeu que sua teoria substituísse as provas na condenação dos réus. Comenta o jurista brasileiro: "Não deixa de ser irônico, dado o seu prestígio internacional e, em particular no Brasil, que Claus Roxin seja citado muitas vezes para fundamentar o afastamento da aplicação da lei penal brasileira. Roxin não propõe um direito penal contra legem, ou seja, um direito penal que contrarie a lei penal alemã. Não pretendemos (…) fazer a defesa das teses de Roxin, estamos apenas realçando sua fidelidade à lei. No caso dele, da lei alemã. No nosso, deve, ou pelo menos deveria ser, a lei brasileira".
Pois, a tragédia, do ponto de vista da filosofia do Direito, nota Pereira Dutra, é que, no Brasil, a teoria do domínio do fato é dispensável, pois não existem no arcabouço jurídico brasileiro os problemas que essa teoria se propôs a resolver no seu correspondente alemão.
O que não impediu, certamente, que expressões retiradas do "Tratado" de Roxin fossem invocadas a torto e a direito, no STF, como "verdadeiras palavras mágicas", apesar de sua ausência de significado no caso concreto (exceto, acrescentamos nós, o significado de condenar sem provas, o significado de substituir a lei e o Direito pela mera perseguição política).
No fundo, como diz Pereira Dutra, "trata-se da singela questão de que, em uma Democracia, o Parlamento faz a lei e o Judiciário a aplica. Vivemos no Brasil um momento em que abundam teorias e trabalhos acadêmicos para que juízes não se pautem mais pela lei".
Assim, não espanta que o Direito brasileiro tenha sido abandonado – substituído por uma ficção de Direito alemão que não existe aqui nem na Alemanha. Nas palavras de Pereira Dutra: "Causa espanto a falta de referência ao nosso Código Penal (CP) no julgamento do ‘mensalão’. Nosso CP disciplina de forma diferente do CP alemão a matéria do concurso de pessoas. No entanto, ele disciplina. Não temos que importar o direito penal alemão para substituir nossa disciplina legal. Não é correto invocar teorias jurídicas para modificar a disciplina legal pátria, muito menos em temas de Direito penal, onde o princípio da legalidade avulta em importância".
A questão, lembra o nosso jurista, fora já resolvida por um de seus mais ilustres antecessores, o ministro Nelson Hungria, em seus "Comentários ao Código Penal".
"A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito."
C.L.

IZAAC PEREIRA DUTRA FILHO (1)*

1. O presente texto pretende demonstrar que, no julgamento do chamado "mensalão", o STF cometeu inúmeros equívocos ao manipular a chamada teoria do domínio do fato.

2. Expressões como domínio do fato (Tatherrschaft), domínio funcional do fato (funktionelle Tatherrschaft), domínio final do fato (finale Tatherrschat), homem de trás (Hintermann), autor de escritório (Schreibtischtäter) aparatos organizados de poder (organisatorische Machtapparate) foram invocadas como solução mágica para as dificuldades probatórias e teóricas surgidas no julgamento.
3. Com base no próprio Claus Roxin, que foi o autor mais citado no julgamento, esclarecemos o alcance de todos esses institutos. Servimo-nos dos Tomos I e II do Tratado de ROXIN. O primeiro na edição de 2006 e o segundo na edição de 2003 (2), as mais recentes.
4. A tese central aqui defendida é a seguinte: ao contrário do que foi feito no julgamento do "mensalão", a teoria do domínio do fato, tanto em ROXIN, como entre aqueles que primeiramente começaram a construir a base dessa teoria, não é um critério de afirmação da responsabilidade penal de alguém. Tal teoria somente entra em cena depois de afirmada a responsabilidade penal com base nas provas e nos critérios de imputação. Vencida essa primeira etapa, ela ingressa para esclarecer se o imputado será punido como autor ou como partícipe. E aqui entra a questão central da importância da teoria do domínio do fato no direito penal alemão. Lá, quando se afirma que alguém é partícipe, necessariamente ele terá direito a uma redução da pena. Se se afirma que o imputado é autor, não terá direito a redução da pena. Essa redução é significativa e pode mudar substancialmente a situação do acusado, por exemplo, em um assassinato, onde a pena é de prisão perpétua. Em ROXIN, "domínio do fato" é um critério da afirmação da autoria e de diferenciação da participação. Sabemos que no nosso Código Penal, partícipe ou executor são somente formas de adequação típica. Entre nós, nada impede que um partícipe tenha pena maior do que a pena do próprio executor e este, por sua vez, tenha pena menor do que a de um partícipe. Do ponto de vista do nosso ordenamento jurídico, a teoria do domínio do fato carece de importância, se for considerada em sua real significação e não da forma distorcida como se deu no julgamento da ação penal 470.
5. Repetindo, a teoria do domínio do fato não veio para responder se uma pessoa será ou não responsabilizada penalmente. A afirmação dessa responsabilidade penal deve ser extraída dos sistemas de imputação já conhecidos: causalismo, finalismo ou funcionalismo. É sintomático que ROXIN trate a teoria do domínio do fato somente no Tomo II do seu Tratado, dedicado às formas especiais de aparecimento do fato punível. Os critérios de imputação da responsabilidade penal são tratados no Tomo I, dedicado aos fundamentos e estrutura do fato punível.
6. Para começar, é preciso entender a disciplina do assunto no Código Penal (CP) alemão. Na lei alemã, aquele que induz outrem a entrar em uma residência e dali subtrair bens móveis é INDUTOR (Anstifter) de um crime de furto; o induzido que entra na residência e dali subtrai os bens é AUTOR (Täter) de um crime de furto; e um terceiro que tenha emprestado a gazua para a prática do crime é um PARTÍCIPE (Gehilfe) do crime de furto (3). Nesse exemplo, de acordo com disposição expressa do CP alemão, somente o partícipe que emprestou a gazua terá direito a uma redução da pena. Por outro lado, o indutor, embora com rigor técnico seja partícipe, não tem direito à referida redução da pena. E o autor, evidentemente, também não terá direito a redução da pena.
7. No exemplo do furto, somente é autor aquele que entrou na residência e dali subtraiu os bens móveis (praticou o fato por si mesmo "selbst begeht"). No entanto, o CP alemão prevê, ao lado da autoria imediata (praticar o fato por si mesmo, ou seja, em linguagem simples, colocar a mão na massa e executar sozinho o tipo penal) mais duas formas de autoria; portanto, sem direito à redução de pena. As duas são nossas conhecidas: autoria mediata e coautoria. O autor mediato se serve de uma pessoa isenta de responsabilidade penal para cometer o crime, uma criança, um doente mental etc. O autor mediato comete o fato punível através de outrem (die Straftat durch einen anderen begeht). Aqui, na autoria mediata, o executor é um mero instrumento (Werkzeug) da vontade do autor. Já na coautoria, o fato é cometido em comum por mais de uma pessoa (begehen mehrere die Straftat gemeinschftlich). Na coautoria, apesar de vários os intervenientes, todos estão em pé de igualdade, seja do ponto de vista subjetivo (não existe preponderância da vontade criminosa de um sobre a vontade dos demais), seja do ponto de vista objetivo (todos colocam a mão na massa). Se dois homens, cada um com uma arma, ameaçam uma mulher e os dois realizam o ato sexual, são coautores do crime de estupro; ainda são coautores, se apenas um deles ameaça com a arma e somente o outro realiza o ato sexual. Nessa última situação, ambos colocam a mão na massa, haja vista que o tipo penal do crime de estupro contém as duas condutas: grave ameaça e ato sexual.
8. Portanto, o CP alemão define três formas de autoria para as quais não caberá redução da pena. Traz ainda um conceito de participação, para o qual não caberá a referida redução da pena que é a indução (Anstifung) (4). No CP alemão, todos os demais partícipes têm direito à redução da pena. No citado exemplo de ROXIN, é o caso daquele que emprestou a gazua. O indutor, a rigor, também é partícipe, ele não entra nas três formas de autoria acima indicadas. O CP alemão não diz que o indutor é autor, diz que ele é punido como se autor fosse. Em síntese, apesar de ser um partícipe, com relação ao indutor, a lei alemã, de forma excepcional, não permite a redução da pena.
8.1. Síntese do assunto na lei alemã. A autoria assume três modalidades: a.1) autoria imediata, quem executa o crime por si mesmo e sozinho coloca a mão na massa: efetua o disparo, coloca o veneno, desfere as facadas, oferece ou promete a vantagem ao funcionário público etc; a.2) autoria mediata, o autor se vale de uma pessoa que executa o crime como mero instrumento (o executor atua sem consciência do que faz ou atua mediante coação); a.3) coautoria, todos os intervenientes praticam o fato de forma comum. Para todas essas três formas de autoria, a lei não admite a referida redução da pena. A participação (Teilnahme) assume, por sua vez, duas formas: b.1) a indução (Anstifung) e b.2) qualquer outra forma de auxílio (Beihilfe). O primeiro partícipe (indutor) não tem direito à redução da pena; enquanto o segundo partícipe tem direto à redução da pena.
8.2. Cabe adiantar uma explicação. Tanto o autor mediato (aquele que faz incidir em erro ou coage o executor) quanto o indutor poderiam ser considerados homens de trás (Hintermann), mas essa expressão deve ser reservada somente para o autor mediato. O fato é que o indutor tem que realizar um processo de convencimento. Depois de convencido, o induzido passa a agir por conta própria, ele não é um mero instrumento da vontade do homem de trás, como seria o caso daquele que falsifica um documento porque o homem de trás aponta uma arma para sua cabeça. Ou seja, homem de trás (Hintermann) é uma expressão que deve ser reservada para os casos de autoria mediata. Como adiante veremos, ROXIN irá propor a expressão "autor de escritório" (Schreibtischtäter) como uma espécie do gênero Hintermann (homem de trás). Tanto o Hintermann como Schreibtischtäter se referem somente aos casos em que o executor age como mero instrumento. Essas duas expressões foram lançadas de forma totalmente assistemática no julgamento da ação penal 470.
8.2.1. Embora tanto o indutor como o autor mediato não tenham direito à redução de pena, essa distinção é fundamental para a compreensão do tema e ganhará relevo quando da análise dos chamados aparatos organizados de poder.
9. Portanto, já entendemos a disciplina do assunto no CP alemão. Como de praxe, no entanto, isso não basta. A regra de impedir a redução da pena para quem seja autor, em alguns casos concretos, se mostra muito rigorosa.
10. Vamos a um caso clássico do direito alemão. No ano de 1940, uma mulher, para ocultar o que ela entendia ser a desonra de uma gravidez fora das regras da sociedade de então, ao acabar de dar à luz, insta, induz sua irmã a matar o recém-nascido. Atendendo ao pedido da parturiente, a irmã teria afogado a criança em uma banheira (Badewannen-fall - caso da banheira). A irmã que teria afogado a criança pratica o fato ela mesma (selbst begeht), portanto seria autora e não teria direito à redução de pena que, à época, era a pena de morte. No CP alemão atual, 1975, a pena é de prisão perpétua para esses casos (5).
11. Para mitigar o rigor da lei em casos como o da banheira, surgiu na Alemanha, já no final do século XIX, a chamada teoria subjetiva da autoria. Como o próprio nome diz, ela contrapõe ao dado objetivo (no nosso exemplo, afogar a criança) um dado subjetivo (ao afogar a criança, a autora não queria matá-la por vontade própria, em interesse próprio, mas para atender ao pedido da irmã). Com esse dado subjetivo, poder-se-ia, e, de fato, foi assim julgado, considerar aquela que teria afogado a criança não como autora e sim como partícipe, passando a ter direito a uma substancial atenuação da pena.
12. Segundo ROXIN, em sua primeira variante, a teoria subjetiva adota o critério da vontade de autor. Autor seria aquele que age com "vontade de autor" („Täterwillen" [animus auctoris]) e o partícipe, seria quem age com "vontade de partícipe" („Teilnehmerwillen" [animus socci]).
13. Uma segunda variante da teoria subjetiva é a teoria do interesse. Autor seria quem agisse com interesse próprio no fato e partícipe seria aquele que agisse em interesse de outrem, ou seja, sem interesse próprio. Foi essa segunda vertente a usada pelo Tribunal do Império no caso da banheira para, não obstante a autoria direta (autoria imediata com o ato de afogar a criança), mitigar a reprimenda e afastar a pena de morte. Entendeu-se que aquela que afogou a criança não agiu em interesse próprio, mas no interesse da parturiente.
14. Já a jurisprudência do Tribunal Federal Alemão (que substituiu o Tribunal do Império) é oscilante, como afirma ROXIN. Embora em geral entenda que quem realiza o tipo com as próprias mãos seja autor e não mero partícipe (6), há exceções. De grande repercussão foi o chamado caso Staschynkij. Ele seria um agente soviético que, a mando do serviço secreto soviético, teria matado dois exilados que se encontravam na então Alemanha Ocidental. O tribunal o considerou apenas partícipe. O mesmo tratamento alguns tribunais alemães adotaram em julgamentos de criminosos de guerra nazistas. Considerou-se que nazistas executores de crimes violentos teriam agido em interesse alheio e subordinados à vontade alheia.
15. É dentro dessa problemática que ROXIN retrabalha a teoria do domínio do fato para se contrapor a essas concepções subjetivas (teoria da vontade de autor e teoria do interesse). Assim como suas rivais, a teoria do domínio do fato não surge para fundamentar a imputação da responsabilidade penal. Em linguagem mais simples, ela não surge para afirmar se alguém é culpado ou inocente, como equivocadamente fez o STF. Ela serve somente para dizer, depois de analisada a prova e constatada a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, se o culpado será tratado como autor ou partícipe. Ela não tem nada a ver com a análise da prova nem com a afirmação da existência de responsabilidade penal.
Notas
1 Izaac Pereira Dutra Filho, Promotor de Justiça em Brasília/DF e Especialista em Ciências Penais (izaacpdf@gmail.com); com a colaboração de Alfredo de Pádua, advogado em Goiânia/GO (alfredodepadua@hotmail.com). Autorizada reprodução e divulgação, desde que mantida a fidelidade ao texto e a indicação da autoria e colaboração.
2 Strafrecht, Allgemeiner Teil, Band I, 4., vollständig neue bearbeitete Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2006; Band II, 2003. Infelizmente são comuns distorções de pensamentos de autores estrangeiros, em particular do próprio ROXIN. Assim ao final consta um anexo, na sequência exata do texto no Tratado, sem excluir ou acrescentar nada, com seis parágrafos que nos dão a ideia exata do alcance da formulação de ROXIN quanto à teoria do domínio do fato. Tendo em vista a presença de pessoas com domínio do idioma alemão no meio jurídico, poder-se-á, quem entender que nossa tradução não está correta, corrigi-la. As críticas serão bem vindas. Por outro lado, com a transcrição direta, poupamo-nos de reproduzir os artigos do Código penal alemão, referentes ao tema da autoria e da participação, haja vista que ROXIN já o faz nos trechos do anexo. ANOTAMOS que as transcrições do texto original têm apenas a finalidade de comprovar nossa fidelidade ao pensamento de ROXIN. Portanto, sua leitura não é necessária para o entendimento do presente texto.
3 Esse exemplo com o tipo penal do furto é de ROXIN e consta no anexo.
4 Pode soar estranho que o indutor seja tecnicamente partícipe, dado que, na consciência comum a conduta de quem induz outrem a praticar um crime, a conduta do mandante, não raro, é mais reprovável do que a própria execução. Acontece que reprovabilidade de uma conduta nasce, tecnicamente, da conjugação da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. Em um direito penal do fato e não das subjetividades, o dado primordial é o fato, o acontecimento. Antes de serem considerados os aspectos pessoais, as motivações, a conduta de vida de cada interveniente, deve ser constatada a existência de um fato. A própria palavra alemã que ainda nos dias atuais designa o que nos chamamos de tipo, que é palavra Tatbestand, foi tradução inicial que os alemães fizeram da palavra latina corpus delicti. Diante do corpo de delito, do resultado objetivamente, materialmente considerado, por exemplo, o cadáver, a conduta de efetuar os disparos ou desfechar os golpes com a faca é o dado mais relevante. Ter contratado o matador de aluguel é algo secundário, do ponto de vista estritamente objetivo. Assim sendo, por outro lado, também na consciência comum, na linguagem corrente, "matar alguém" é algo diferente de "mandar matar alguém". De fato, o nosso tipo do homicídio não tipifica "mandar matar alguém", tipifica somente "matar alguém". Assim, entre nós, a conduta do mandante não encontra adequação típica direta, imediata no art. 121 do nosso CP. Sua tipicidade decorre da existência de um tipo de extensão que é o art. 29 que diz que "todo aquele que concorre para o crime, incide nas penas a ele cominadas". É nesse aspecto técnico, que fica claro no nosso CP, em que reside a pertinência da afirmação de que a conduta do mandante é acessória em relação à conduta do executor e, por conseguinte, o mandante é partícipe. Infelizmente não é somente para leigos que essas palavras são importantes. Na literatura jurídico-penal atual, no Brasil, reina a mais completa confusão. Autores de renome se levantam contra o que lhes parece ser um absurdo considerar que o mandante seria "mero" partícipe. No CP alemão, em que o partícipe tem necessariamente uma pena menor em relação ao autor, o adjetivo mero tem sentido. Entre nós ser participe ou ser autor (a rigor o nosso CP usa a palavra "executor") é somente questão de adequação típica. Não se percebe que, por trás dessas sutilezas técnicas, existe uma opção legal pelo direito do fato em detrimento do direito penal de autor. O juiz penal somente deveria analisar a culpabilidade (categoria jurídica do crime na qual ingressam com maior relevo os dados pessoais de cada um dos intervenientes) depois de afirmada a existência de um tipo, de um fato, de um Tatbestand. Na teoria jurídica do crime, as palavras têm profundo componente ideológico. De forma recorrente, o CP alemão, por exemplo, deixa de lado as palavras "tipo legal" ou "crime", palavras de caráter abstrato, e usa a expressão "fato punível" (Straftat). O próprio Ernst Beling, na sua famosa obra de 1906, em que concebe o tipo como algo abstrato (ele deixou de ver o cadáver para ver o homicídio), optou por permanecer com a palavra anterior (Tatbestand) e se limitou a indicar, entre parêntesis, o que seria a expressão abstrata: typus. Também aqui se trata, na escolha das palavras, de um reforço ideológico do direito penal do fato. No que diz respeito à tipicidade, que é a porta de entrada da responsabilidade penal, nosso CP e o CP alemão, assim como um direito penal do fato, dão primazia o homem da frente e não ao homem de trás. De forma simples, podemos dizer que o direito penal do fato realiza o postulado Iluminista de que ninguém deve ser punido pelo que pensa ou pela sua conduta de vida, mas, somente, pelo que fez, pelo fato que realizou. Essa concretização dos ideais Iluministas deveria ser também a tarefa de uma teoria jurídica do crime correta. Uma teoria do crime que somente busca interpretar, integrar e não reescrever a lei. O que temos assistido é a invocação de teorias jurídicas "pós-modernas", que levam a que o Juiz julgue de acordo com sua particular visão de mundo, de acordo com seus valores pessoais, em detrimento da lei. É forçoso reconhecer, entretanto, que, na maioria das vezes, o que se passa com essas teorias "pós-modernas" é simplesmente uma incompreensão de penalistas famosos em outros países.
5 Apesar de penas diferentes, a disciplina da autoria e da participação no atual CP alemão é, essencialmente, a mesma do Código penal do Império de 1871.
6 Nunca é demais reafirmar que o adjetivo "mero" tem sentido no direito penal alemão onde o partícipe recebe, necessariamente, uma pena atenuada. Na sistemática do nosso CP, falar em "mero" partícipe é uma impropriedade. De acordo com a nossa disciplina legal, o partícipe pode receber pena maior do que o executor. Diz o art. 62 do nosso CP que a pena será agravada em relação ao agente que "executa o crime ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa". Por outro lado, nosso art. 29 afirma: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade". Entre nós, ao contrário do CP alemão, o peso da intervenção, da contribuição, objetivamente analisada para a realização do evento (emprestar a arma versus efetuar os disparos) não vincula de forma necessária a pena. É bom lembrar também que a redução da pena no CP alemão não é pequena. Dispõe o art. 49, I do CP alemão que a pena de prisão perpétua pode ser reduzida a uma pena de 3 (três) anos de prisão. Podemos imaginar as batalhas homéricas travadas entre acusação e defesa sobre autoria e participação. Daí a importância de teorias como a do domínio do fato entre eles.

Jornal Hora do Povo:

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Friday, October 14, 2011

Quem é o povo no Brasil?

Quem é o povo no Brasil? (1)

O texto que publicamos nesta e nas próximas edições é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos.

"Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro" é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré.

Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré.

O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.

A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos "nacionalismo" e "nacional-desenvolvimentismo". Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão: "A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos" (grifo nosso).

Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias - continua no mesmo terreno.

Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida.

Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram "nacionalismo de fins" (hoje se diria "nacionalismo de resultados").

Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro "O nacionalismo na atualidade brasileira" é muito fácil perceber hoje que o "nacionalismo de fins" era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à "eficácia técnica". Em nome desta, os adeptos do "nacionalismo de fins" aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais.

Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse "desenvolvimentismo sem nacionalismo", como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do "nacionalismo de fins" - levado às suas últimas consequências, o "nacionalismo de fins" tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação.

Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo - de Jaguaribe e outros.

A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista.

Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou.

No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação.

Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar.

CARLOS LOPES

NELSON WERNECK SODRÉ

Deixamos de lado, propositadamente, a fase em que o Brasil era colônia. É suficiente, para definir quem é o povo no Brasil, considerar algumas fases de sua existência autônoma: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Convém repetir o que convencionamos aceitar como geral no conceito de povo, antes de situar os três momentos particulares referidos: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive. Definindo, em relação a cada uma das três fases, quais as tarefas do desenvolvimento progressista (nos dois primeiros) ou progressista e revolucionário (no último), e quais as classes, camadas ou grupos que se empenharam (ou se empenham) na solução objetiva daquelas tarefas, teremos definido quem era (e quem é) o povo em cada uma.

INDEPENDÊNCIA

Comecemos pela mais antiga, a da Independência. A partir da segunda metade do século XVIII, particularmente no seu final, o problema político fundamental, no Brasil, é o da Independência: realizar a Independência constitui a tarefa do desenvolvimento progressista, naquela fase. Cada fase coloca os problemas quando esboça ou alcança as condições para resolvê-los. O problema da Independência, assim, não apareceu acidentalmente: condições externas e condições internas fizeram com que surgisse, esboçaram e depois definiram objetivamente as condições para resolvê-lo. A essência dos laços que subordinavam o Brasil a Portugal, na referida fase, encontrava-se no regime de monopólio comercial, que assegurava à metrópole participação espoliativa na renda das trocas entre a colônia e o exterior, no sentido da exportação e no sentido da importação, além da espoliação realizada com a tributação interna desigualmente distribuída, onerando os menos afortunados, como é da boa prática colonial em todos os tempos.

A quem interessava a Independência? Externamente, interessava a quem se propunha conquistar o mercado brasileiro: a burguesia europeia, em ascensão rápida com a Revolução Industrial, e particularmente a burguesia inglesa, classe dominante em seu país. A expansão burguesa era incompatível com os mercados fechados, com as áreas enclausuradas, com o monopólio comercial mantido pelas metrópoles em suas colônias. Quando as condições mundiais estivessem amadurecidas, e os fatos, — no caso, as guerras napoleônicas, — assinalassem o desencadeamento do processo, a Inglaterra, dominadora dos mares, isto é, da circulação mundial de mercadorias, participaria ativamente dos movimentos de autonomia na área ibérica do continente americano.

A quem interessava a Independência, internamente? Antes de verificar este ponto, convém ter uma ideia da estrutura social brasileira na época. Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes no Brasil. Desses quatro milhões, um milhão e duzentos mil são escravos. Do ponto de vista social, a população se reparte em: a) senhores de terras e de escravos, — que constituem a classe dominante, — e são em vastas áreas, senhores de terras e de servos, quando nelas existem relações feudais; b) pessoas livres, não vivendo da exploração do trabalho alheio, agrupadas numa camada intermediária, entre os senhores, de um lado, e os escravos e os servos, de outro, camada que recebera grande impulso com a atividade mineradora, compreendendo pequenos proprietários rurais, comerciantes, intelectuais, funcionários, clérigos, militares; c) trabalhadores submetidos ao regime da servidão; d) escravos.

Como os servos e escravos, tanto quanto os pequenos grupos de trabalhadores livres que se dispersam particularmente em áreas urbanas, não têm consciência política, embrutecidos que se acham pelo regime colonial, só participam da luta pela autonomia a classe dominante de senhores e a camada intermediária. Esta, incontestavelmente, participa desde muito cedo da referida luta e está presente em todos os movimentos precursores dela, movimentos que, como a Inconfidência Mineira, reúnem militares, padres e letrados. Pelas condições que caracterizam a vida colonial, entretanto, a luta pela autonomia só poderia ter possibilidades de vitória quando englobasse a classe dominante. E esta padece de vacilações constantes; só esposará o ideal da Independência em sua fase final, empolgando-o, para moldar o Estado segundo os seus interesses.

Está profundamente interessada no que a Independência tem de fundamental: a derrocada do monopólio de comércio. Suas vacilações, entretanto, não se prendem apenas à tradição colonial — quando era procuradora da metrópole aqui; prendem-se ainda ao temor de que a pressão externa contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo encontre na autonomia oportunidade para alcançar seus objetivos, e prendem-se também ao temor de que o abalo social que a autonomia pode proporcionar traga-lhe ameaças ao domínio, particularmente no que se refere à ascensão do grupo mercantil. A camada intermediária também está interessada na autonomia, pela qual elementos seus já combateram e se sacrificaram, e não apenas os do grupo mercantil, mas muitos outros, os intelectuais, padres e militares à frente. Servos e escravos não têm consciência política do processo, embora acompanhem-no com o seu apoio, na medida do possível.

Se a tarefa do desenvolvimento progressista do Brasil, nessa fase histórica, é a realização da Independência, como vimos, e se o povo, em tal fase, é representado pelo conjunto de classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva daquela tarefa, o povo brasileiro abrange, então, todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira. Claro está que cada uma com o seu coeficiente próprio de esforço e de interesse: a classe dominante com as suas vacilações e pronunciamento tardio; a camada intermediária com a sua vibração; as demais na medida da consciência política de seus elementos. Ocorre que essa composição política é transitória: conquistada a Independência, com a manutenção da estrutura colonial (e por isso mesmo não se trata de uma revolução), povo tornar-se-á outra coisa. Dele já não fará parte a classe dominante senhorial que tratará, na montagem do Estado, de afastar totalmente as demais classes, camadas e grupos do poder e da participação política, como veremos adiante.

Situemos, agora, a fase em que o país muda de regime, com a derrocada da monarquia. Qual era a tarefa progressista a realizar no Brasil, em tal momento? Era, certamente, a de liquidar o Império, que representava o atraso. O Brasil apresentava-se agora muito diferente: sua população atinge a catorze milhões de habitantes; nela, os escravos, ao fim da penúltima década do século, são cerca de setecentos mil. A área escravista reduziu-se muito e mantém-se em estagnação econômica; mas a área da servidão ampliou-se muito, quanto ao espaço, embora compreenda principalmente zonas fora do mercado interno. Dos catorze milhões de habitantes, admite-se que apenas trezentos mil sejam proprietários, compreendidos parentes e aderentes: constituem a classe dominante. Nela, a velha homogeneidade desapareceu, entretanto, verificando-se uma cisão: há uma parte que permanece ancorada nas relações de trabalho da escravidão ou da servidão, e outra parte que aceita, prefere ou adota relações de trabalho assalariado. Desapareceu a homogeneidade porque, em determinadas áreas, as velhas relações foram, a pouco e pouco, substituídas por novas relações.

O Brasil passou, na segunda metade do século XIX, por grandes alterações, realmente: as cidades se desenvolveram depressa, em algumas zonas a população urbana cresceu em poucos anos, o comércio se diversificou e se ampliou, apareceram pequenas indústrias de bens de consumo, o aparelho de Estado cresceu, surgindo o numeroso funcionalismo que desperta tantas controvérsias, mas a divisão do trabalho multiplicou também as suas formas, aparecendo atividades até então desconhecidas. As profissões ditas liberais passaram a atrair muita gente; desenvolveu-se o meio estudantil; atividades intelectuais começaram a ocupar espaço na sociedade urbana. Ora, tudo isso revelava o aumento da velha camada intermediária colocada entre senhores e escravos, ou entre senhores e servos, ou entre patrões e empregados. Aparece, agora, com fisionomia definida, tão definida quanto lhe permitem as próprias características, como classe média, ou pequena burguesia. É curioso notar que constitui uma peculiaridade brasileira, e não só brasileira, o fato de ser a pequena burguesia historicamente mais antiga do que a grande burguesia e do que o proletariado. Nos fins do século XIX, sua importância é destacada, quando a burguesia começa a definir-se, recrutada particularmente entre os latifundiários, e o proletariado dá os primeiros passos, recrutado principalmente no campesinato.

As relações de trabalho no campo sofrem grandes alterações também. Enquanto algumas áreas permanecem aferradas à escravidão, que só abandonam com o ato abolicionista, e outras permanecem aferradas à servidão, as que se desenvolvem economicamente excluem o trabalho escravo, que as entrava, e começam a operar com o trabalho assalariado, em parte com os elementos introduzidos pela imigração sistematizada. É um processo paralelo e conjugado em que os polos antagônicos crescem interligados, diferenciando nos latifundiários uma camada que passa a constituir a burguesia, e diferenciando nos trabalhadores uma camada que passa a constituir o proletariado e o semi-proletariado. Esse processo se desenvolve também nas áreas urbanas, onde proletariado e semi-proletariado aumentam lentamente seus contingentes. Com a extinção do trabalho escravo, permanecerão as relações feudais e semifeudais no campo, conjugadas ao latifúndio. Nas áreas urbanas, a burguesia amplia muito depressa o seu campo, com as atividades comerciais, industriais e bancárias.

Quem é o povo no Brasil? (2)

Continuação da edição anterior

Depois de consumada a República, as coisas já se tornaram mais difíceis. A classe dominante minoritária desligou-se, realmente, do conjunto em que se compunha com as outras classes, camadas e grupos sociais, constituindo o povo, e isolou-se no poder, a fim de desfrutá-lo sozinha. Mas encontrou grandes obstáculos para conseguir seu intento

NELSON WERNECK SODRÉ

O Império fora estabelecido como forma de servir a uma classe dominante homogênea, constituída pelos senhores de terras, que o eram também de escravos e de servos. Agora, as condições são outras, e ele já não atendia aos interesses da classe dominante cindida entre latifundiários, senhores de terras e de servos, e burgueses. Não atendia, com mais forte razão, aos interesses da pequena burguesia. Nem aos do reduzido proletariado; nem aos do semiproletariado; muito menos aos dos servos. A tarefa progressista, nas condições brasileiras dos fins do século XIX, consistia em liquidar o Império, não no que representava de formal e exterior, mas no que tinha de essencial: todas as velhas relações econômicas e políticas que entravavam o desenvolvimento do país. Que classes, camadas e grupos estavam interessadas, pelas suas condições objetivas, em liquidar as velhas instituições, tão profundamente ancoradas no período colonial e transferidas ao período autônomo? Se a Independência reunira o apoio de todas elas, com uma participação proporcional à força de cada uma e ao grau de consciência política de seus elementos, já a República não provocaria a unanimidade. As classes interessadas na implantação do novo regime compunham uma ampla frente, encabeçada pela burguesia nascente, a que se somavam a pequena burguesia, o proletariado, o semiproletariado e os servos. Como acontecera com a Independência, a burguesia nascente se mostrava vacilante; a pequena burguesia, que esposara muito antes o ideal republicano, era mais enérgica em suas manifestações; o reduzido proletariado e particularmente o semiproletariado não haviam alcançado ainda o grau de consciência política necessário a uma participação eficiente; e a servidão permanecia estática, isolada no vasto mundo rural. Quem constituía o povo, então? Estas classes, evidentemente, as que estavam interessadas na tarefa progressista, historicamente necessária, de criar a República. A classe latifundiária não fazia parte do povo. Seu último serviço fora a Independência.

Gerada a circunstância em que se consumaria a derrocada do velho regime, a classe média, representada particularmente pelo grupo militar, assumiu a direção dos acontecimentos. Mas a burguesia nascente apressou-se em compor as forças com o latifúndio para poder moldar o novo regime na conformidade com os seus interesses e os das velhas forças sociais. Como por ocasião da Independência, assiste-se a um processo claramente repartido em duas fases: a primeira, em que o povo, representado pelas classes interessadas na realização das tarefas progressistas, opera unido e consuma os atos concretos relativos à transformação historicamente necessária; a segunda, em que a classe dirigente, a que detém a hegemonia na composição que constitui o povo, torna-se a nova classe dominante, e comanda as alterações à medida dos seus interesses, preferindo a retomada da aliança com as forças do atraso à manutenção da aliança com as forças do avanço. A unidade tácita e eventual da primeira fase se desfaz; as contradições e os antagonismos de classe reaparecem.

Estas duas fases repetem-se em todas a oportunidades em que as transformações se limitam a substituir a dominação de uma minoria pela dominação de outra minoria que, transitoriamente, recebe o apoio da maioria e dele se vale para chegar ao poder. Isso não aconteceu apenas no Brasil, evidentemente; aconteceu por toda a parte, ao longo dos séculos, mas por toda a parte as condições para que os fatos se passassem desta maneira foram se tornando cada vez mais difíceis. No Brasil também: quando da Independência, a classe dominante dos senhores não teve muitas dificuldades para separar-se das outras classes, camadas e grupos sociais que com ela haviam constituído o povo, para a tarefa progressista da emancipação: essas dificuldades não faltaram, contudo, e foram assinaladas nas rebeliões provinciais que sacudiram o novo Império até os meados do século XIX. Mas os senhores venceram esses obstáculos, dominaram as rebeliões e tomaram conta totalmente do País, impondo-lhe as formas políticas e institucionais que lhes convinham.

Depois de consumada a República, as coisas já se tornaram mais difíceis. A classe dominante minoritária desligou-se, realmente, do conjunto em que se compunha com as outras classes, camadas e grupos sociais, constituindo o povo, e isolou-se no poder, a fim de desfrutá-lo sozinha. Mas encontrou grandes obstáculos para conseguir seu intento. A pequena burguesia brasileira, antiga na formação e antiga nas reivindicações políticas — e a República era uma dessas velhas reivindicações, esposada desde os tempos coloniais — defendeu bravamente as suas posições e houve necessidade de cruentos choques para desalojá-la. O florianismo foi a sua expressão específica e desempenhou papel importante na história política brasileira. Para manter-se no poder, a burguesia nascente foi obrigada a rearticular-se com a classe latifundiária, exercer ações de força e montar um sistema de repressão, a chamada "política dos governadores", que abrangia todo o País. Mais do que isso: foi obrigada a articular-se com forças externas para manter-se no poder. Quando Campos Sales, estabelecido o domínio das oligarquias, transaciona o funding com o imperialismo inglês, articula uma frente dominante que associa latifundiários, burguesia e imperialismo, contra o povo brasileiro.

Vimos, de forma prática, ligando o conceito às situações históricas concretas, quem era o povo brasileiro, em duas fases distintas. Estamos em condições, finalmente, de definir quem é o povo brasileiro, hoje, nos dias que correm, na fase histórica em que vivemos, de que participamos. Qual a tarefa progressista e revolucionária, na atual etapa da vida brasileira? Note-se: pela primeira vez aparece o conceito de revolução quanto às tarefas históricas, no que se refere ao nosso País. A Independência e a República, com efeito, foram tarefas progressistas, mas não foram tarefas revolucionárias: a classe dominante permaneceu a mesma, embora, no segundo caso, tivesse, depois da mudança do regime, repartido o poder com a nascente burguesia, continuando hegemônica. Agora, trata-se de liquidar, definitivamente, a classe latifundiária, tornada anacrônica pelo desenvolvimento do País. Trata-se de substituí-la. Trata-se, ainda, de quebrar a aliança que a vincula ao imperialismo, derrotando também a este e barrando-lhe a ingerência no processo nacional.

Qual a estrutura da sociedade brasileira, nos nossos dias? O Brasil mudou muito, realmente, em relação ao que era nos fins do século XIX, quando se instaurou a República. Participou, de uma forma ou de outra, de duas guerras mundiais, e sofreu os efeitos da maior crise atravessada pelo regime capitalista. As guerras e a crise tiveram importantes reflexos em nosso País: permitiram rápidos impulsos à sua industrialização e a conquista do mercado interno pelo produtor nacional. Foram pausas transitórias na pressão imperialista, e por isso tivemos oportunidades desafogadas de progredir mais depressa. Mas não foram causas do progresso. As causas acham-se sempre ancoradas no desenvolvimento das forças produtivas e na acumulação decorrente. O processo, nas fases especiais referidas, apenas teve seu ritmo acelerado. O fato é que, no século XX, o Brasil vai se tornando, cada vez mais depressa, um País capitalista. Não importa aqui, evidentemente, analisar as características desse capitalismo, que se desenvolve em País de economia dependente, com estrutura de produção entravada ainda pelos remanescentes coloniais. Importa constatar o fato.

O desenvolvimento capitalista, cuja demonstração mais evidente se encontra na forma e na rapidez como reagiu a economia nacional aos efeitos da crise de 1929, teve profundos reflexos na estrutura social do país e em sua vida política. À proporção que as relações capitalistas se ampliam, a burguesia brasileira cresce e se organiza, definindo as suas reivindicações políticas; e, paralelamente, crescem o proletariado e o semiproletariado, que se organizam, definindo aquele as suas reivindicações políticas. Por força dos mesmos efeitos, reduz-se o poder da classe dos latifundiários e no campo fermentam inquietações. Aumenta a pequena burguesia, que se multiplica em atividades, em disputa de melhores oportunidades. Está presente nos grandes episódios políticos: as campanhas de Rui Barbosa, o tenentismo, a revolução de 1930. No vasto mundo rural, o campesinato começa a acordar do sono secular: aparecem as revoluções camponesas, travestidas de fanatismo religioso; primeiro Canudos, depois o Contestado, e prossegue na luta dos posseiros e nas organizações atuais, as Ligas Camponesas, que tanto surpreendem e assustam os que acreditavam piamente na eternidade do conformismo.

A classe dos latifundiários continua dominante, mas suas perspectivas são agora cada vez mais estreitas. Somente subsiste mediante alianças: a) aliança com o imperialismo, de que aproveita os empréstimos constantes para financiamento de safras invendáveis, mas que já a protege mal, porque força a baixa dos preços dos produtos que ela coloca no exterior, explora a comercialização do que ela produz, e fala até em reforma agrária, que parece um sacrilégio; b) aliança com uma parte da grande burguesia comercial, bancária e mesmo industrial — que também se associa ao imperialismo,— desejosa de substituir os latifundiários como curadora deles, mas necessitando, internamente, de apoiar-se nesse velho e carunchoso reduto do atraso, pelo temor de transformações que ultrapassem os seus anseios e interesses. O imperialismo joga com as duas classes: a velha, que o serviu tão bem e que ele subordina tão dócil e facilmente com as manipulações do comércio exterior e com os empréstimos; e a nova, que ele subordina graças à associação de interesses e com novos empréstimos. Está presente por toda a parte: quando um brasileiro acende a luz, faz a comida, fala no telefone, toma o bonde, escova os dentes, raspa a barba, liga o rádio, vai ao cinema, em todos esses momentos encontra a presença do imperialismo, e a sua mão rapace, que lhe cobra o preço de todos os atos da vida cotidiana.

A burguesia cresceu muito, de fato, e comporta perfeitamente, agora, a divisão clássica em grande, média e pequena. Quanto ao imperialismo, ela está mais próxima dele quanto mais alta, mas em todos os três níveis há elementos que sofrem as suas ações e que as combatem. O proletariado desenvolveu-se amplamente também, nas áreas urbanas principalmente, mas também no campo. Os numerosos elementos antes submetidos a servidão começam a transitar para o semiproletariado: vastas áreas territoriais vão sendo integradas na economia de mercado, restringindo-se a servidão e semi-servidão. É o campesinato que oferece as alterações mais evidentes e denuncia mudanças inevitáveis. O latifúndio está condenado e a própria burguesia concorda com essa condenação, temendo, contudo, efetivá-la, pois ampara-se ainda, na luta contra o proletariado, nessa base secular do atraso. O campesinato está sacudindo, a pouco e pouco, as suas peias, e apresenta reivindicações recebidas com indisfarçável alarma pela classe dominante.

O poder está repartido entre a alta burguesia e os latifundiários, ligados, todos, ao imperialismo. Estas classes exercem o poder, porém, sob fiscalização rigorosa e combate continuado; as pressões provêm das demais classes, internamente, e do imperialismo, externamente. A resultante é, esporadicamente, favorável ao interesse nacional, porque mesmo a alta burguesia tem ainda frações ligadas aos interesses brasileiros, mas estes lances isolados resultam de circunstâncias especiais, como aquelas de que resultou a siderurgia do Estado, ou de campanhas tempestuosas, como a de que surgiu o monopólio na exploração petrolífera. O cerne da aliança que une a alta burguesia, a classe latifundiária e o imperialismo reside na política econômica e financeira, cujo aparelho é zelosamente defendido, passando e sucedendo-se governos aparentemente contrastantes mas permanecendo rigorosamente a mesma política e o mesmo grupo burocrático que representa a confiança da frente antinacional.

Na luta pelo poder, refletem-se, como é normal, as profundas contradições e antagonismos que assinalam a presente fase histórica e correspondem ao quadro real, à situação objetiva. Essa luta, aparentemente, é travada pelos partidos, mas quando praticamos uma análise mais atenta e verídica aparece o verdadeiro contorno dela, que ultrapassa amplamente o âmbito dos partidos, transferindo-se a outras organizações que suprem as deficiências com que os partidos colocam os termos daquela luta: os sindicatos, as organizações estudantis, as Forças Armadas, a Igreja, esta ainda com ponderável influência no campo. Tais organizações estão mobilizadas, participam ativamente da luta política. Vista em grande escala, essa luta apresenta em relevo o problema democrático.

O avultamento do problema democrático deriva de que a manutenção das liberdades democráticas permite o esclarecimento político, e o esclarecimento político permite a tomada de consciência pelo povo, e a tomada de consciência pelo povo permite a execução das tarefas progressistas que a fase histórica exige. Manter as liberdades democráticas, significa, pois, inevitavelmente, ter de enfrentar aquelas tarefas e resolvê-las, segundo a correlação de forças, quando as forças populares são muito mais poderosas do que as que estão interessadas na manutenção de uma estrutura condenada. Para mantê-la, entretanto, torna-se indispensável suprimir as liberdades democráticas. O clima democrático asfixia progressivamente as forças reacionárias, que se incompatibilizaram definitivamente com ele, pedem, imploram um governo de exceção, um golpe salvador, uma poderosa tranca na porta a impedir a entrada do progresso. Tentam, com a freqüência determinada pelas circunstâncias, a sinistra empresa, perdem sucessivamente todas as oportunidades, sendo levadas ao desespero. Mas procuram recuar em ordem, sempre, sacrificando alguns quadros de mais evidência, substituindo-os, recondicionando-os, e seguem outro caminho, o de apresentar uma fachada democrática que esconda o fundo antidemocrático. Buscam, por todos os meios, organizar uma democracia formal em que seja estigmatizado como subversivo tudo o que fere o poder exercido pelos latifundiários e pela alta burguesia em ligação com o imperialismo, em que seja punível qualquer pensamento contra o atraso e a violência de classe. Essa ânsia exasperada em deter a marcha inevitável da história, em sustar o processo político, ameaça o País com a guerra civil, pois as forças antinacionais não recuarão ante ato algum que lhes prolongue o domínio. Assim como no campo internacional o imperialismo preferiria conflagrar o mundo, com a guerra atômica, a ceder as suas posições, no campo nacional aquelas forças preferem conflagrar o País a ver derrotados os seus interesses. Poderão chegar a isso, ou não, entretanto, na conformidade com a correlação de forças sociais.

Continua na próxima edição.