O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (1)
Apesar do fracasso retumbante do neoliberalismo, continua-se a ouvir a ladainha neoliberal, em especial, os seus mantras: “livre mercado”, “metas de inflação”, “câmbio flutuante”, “taxa natural de desemprego”, “PIB potencial”, “relação dívida/PIB”, “autonomia do banco central”, “intocabilidade dos contratos”, “ambiente de negócios”, “medidas macroprudenciais”, etc., etc. & etc. O fato de tais slogans não passarem, do ponto de vista econômico (ou de qualquer outro), de um besteirol, não inibe os neoliberais, o que não seria um problema, se cada louco ficasse com a sua mania. No entanto, quando pessoas de boa fé, iludidas por essa vigarice, repetem essas mesmas inanidades como se isso fosse conhecimento econômico, aí, sim, temos um problema
CARLOS LOPES
Ao contrário do que dizem os seus corifeus, o chamado “neoliberalismo” não é uma teoria ou escola econômica. Aliás, não há nele teoria, nem cacoete de ciência, pois não há nenhuma tentativa de demonstrar que suas supostas teses estão certas. É, na verdade, uma série de dogmas, próximos às prescrições de auto-ajuda – e nada mais. Não por acaso, sua origem está numa espécie de loja maçônica anticomunista e antiprogressista, a Sociedade de Mont Pèlerin, uma P2 do fascismo acadêmico surgida após a II Guerra, e sua essência é, simplesmente, que o melhor para os “mais capazes” é que as economias dos países sejam completamente submetidas aos interesses do setor financeiro mais sequioso e desarvorado.
George Gilder, um dos ideólogos neoliberais do governo Reagan, expressou assim esse conteúdo: “o progresso material é inelutavelmente elitista: faz os ricos ficarem mais ricos e aumenta o seu número, exaltando os poucos homens extraordinários que podem produzir riqueza acima das massas democráticas que a consomem. (…) Para serem bem sucedidos, os pobres necessitam, antes de tudo, da espora da sua pobreza” (cit. in John Kenneth Galbraith, “A Journey Through Economic Time”, Houghton Mifflin, 1994, págs. 214 e 215).
Ou, como disse a senhora Thatcher: “nossa função é glorificar-nos na desigualdade e vigiar para que seja dada abertura e expressão aos talentos e às capacidades, para benefício de todos nós” (cit. in Susan George, “A Short History of Neoliberalism”, Conference on Economic Sovereignty in a Globalising World, março/1999).
Naturalmente, não precisamos dizer quem ou que os neoliberais consideram que são os “poucos homens extraordinários que podem produzir (?) riqueza”, ou os “talentos”(??), ou as “capacidades” (???), ou “todos nós” (????). No Brasil, depois de oito anos de governo tucano, com sua indústria (a única que eles edificaram) de subornos para entregar a propriedade pública, com seus almofadinhas que ficavam milionários do dia para a noite, não há quem desconheça o significado dessa glorificação da mediocridade, do parasitismo, da corrupção - em suma, da falta de escrúpulos e de caráter.
RESULTADOS
Já se observou que os resultados econômicos reais do neoliberalismo, com a única exceção dos ganhos dos monopólios financeiros, não têm a mínima importância para os neoliberais. Ele foi um fracasso não somente nas economias dos países dependentes e periféricos, mas também nas economias dos países centrais. Não poderia, a propósito, haver exemplo mais eloquente desse fracasso do que a Inglaterra, aliás, “Reino Unido”.
Quando Margaret Thatcher assumiu o governo, em 1979, a taxa de investimento (isto é, as inversões em máquinas, equipamentos e edificações produtivas) da economia inglesa estava em 20,4% do PIB (cf., Banco Mundial, “Gross capital formation 1965-2009”).
As “reformas” de Thatcher, modelo mundial do neoliberalismo, fizeram essa taxa de investimento cair violentamente – em 1981, era apenas 16% do PIB. Somente em 1988, a taxa de investimento da economia inglesa voltaria ao patamar de nove anos antes. Mas logo continuaria a cair, depois de 1990, até o abismo de 15,9% (1993), e nunca mais voltou ao nível de 1979. O máximo a que chegou foi 18,3% em 2007, para, com a crise que o próprio neoliberalismo causou no mundo, reduzir-se a ínfimos 13,6% em 2009 (o dado referente a 2010 ainda não foi disponibilizado pelo Banco Mundial).
Como observou Perry Anderson, aliás, um ex-consultor do Banco Mundial, “... a taxa de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de equipamentos produtivos, não apenas não cresceu durante os anos 80, como caiu em relação a seus níveis – já médios – dos anos 70. No conjunto dos países de capitalismo avançado, as cifras são de um incremento anual de 5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos anos 80. Uma curva absolutamente descendente. Cabe perguntar por que a recuperação dos lucros não levou a uma recuperação dos investimentos. Essencialmente, pode-se dizer, porque a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, grifo nosso).
Tomemos outro modelo do neoliberalismo, este um país periférico, o Chile. Nesse país, segundo Milton Friedman, o neoliberalismo teria operado algo que ele chamou de “miracle of Chile” (milagre do Chile). Vejamos esse milagre.
Quando Pinochet começou a fazer suas “reformas”, devidamente aconselhado por Friedman, Hayek e outros expoentes do neoliberalismo, a taxa de investimento da economia chilena, segundo o Banco Mundial, estava em 24,8% do PIB (1974). Dois anos depois, era de apenas 15,7% (1976). Subiu lenta e dolorosamente até 1981 (22,7%) - não devido ao aumento dos investimentos, mas à queda rápida e estúpida do PIB - para cair, em seguida, num precipício: em 1983, a taxa de investimento da economia chilena era de apenas 9,9% do PIB, apesar do PIB ter continuado, também, a cair. E somente saiu desse buraco porque Pinochet abandonou seus mentores neoliberais e implementou uma política econômica diferente a partir de 1984 – naturalmente, Pinochet gostava mais do poder do que do neoliberalismo.
LITANIA
No entanto, apesar desse fracasso retumbante, continua-se a ouvir a ladainha neoliberal, em especial, os seus mantras: “livre mercado”, “metas de inflação”, “câmbio flutuante”, “taxa natural de desemprego”, “PIB potencial”, “relação dívida/PIB”, “autonomia do banco central”, “intocabilidade dos contratos”, “ambiente de negócios”, “medidas macroprudenciais”, etc., etc. & etc.
O fato de tais slogans não passarem, do ponto de vista econômico (ou de qualquer outro), de um besteirol, não inibe os neoliberais, o que não seria um problema, se cada louco ficasse com a sua mania. No entanto, quando pessoas de boa fé, iludidas por essa vigarice, repetem essas mesmas inanidades como se isso fosse conhecimento econômico, aí, sim, temos um problema. Certamente, o alvo preferido dos vigaristas são as pessoas de boa fé.
Esse problema, evidentemente, não está no povo. Este, como mostraram as últimas eleições, querem ver os neoliberais pelas costas – de preferência, é forçoso reconhecer, num poste público. Que o diga o sr. José Serra, que não chegou a tanto, mas sentiu que algo desagradável à sua pessoa estava no ar – além das bolinhas de papel.
A vontade do povo, no entanto, não impediu que o então, e atual, ministro da Fazenda declarasse, ainda antes das eleições, que, fosse qual fosse o candidato eleito, a política econômica seria a mesma (cf. entrevista à “Veja”, ed. 20/06/2009).
Eis o típico neoliberal de país dependente – não interessa a realidade, nem o que o povo escolhe, só o seu pobre e subserviente escaninho mental que não consegue ver nada além do interesse do setor financeiro externo, que para ele é a mesma coisa que a única política econômica possível. O fato de Mantega dizer que não é um neoliberal, que é um “desenvolvimentista”, não tem importância alguma. Há muito, todo neoliberal que se preza – ou seja, que não quer se arriscar – diz que não é neoliberal. Mantega poderia se dizer marxista (como, aliás, já se disse), que isso nada mudaria:
“Como observou o professor Nilson Araújo, o infeliz ‘pai’ do Consenso de Washington diz que nunca foi ‘neoliberal’ (claro que não: ele só quer acabar com o nosso Estado, mas neoliberal ele nunca foi). E, depois de terem cantado em prosa e verso o maravilhoso e tão desejado ‘fim do marxismo’, foi exatamente em Marx que eles foram buscar credibilidade para pespegar em suas bolorentas (Kautsky e Bernstein que o digam) chorumelas. Bob Fields descobriu que Marx era um entusiasta do afastamento cada vez maior entre os produtores e a propriedade dos meios de produção, e que, como ele, adoraria viver sob a servidão imperial. Gustavo Franco, mentor intelectual do presidente da República, é, segundo seu pupilo, ‘puro Marx’. Todos marxistas. Mas a fantasia mais espalhafatosa foi mesmo a de FH. No seu ‘debut’, há muito tempo atrás, ele gostava de deixar no ar que talvez, quem sabe, tivesse alguma coisa a ver com Marx, o ‘método’, o ‘seminário’, mas nada explícito, nada comprometedor, só o indispensável para se esgueirar em águas turvas. Agora, na hora do desespero, ele cita em vão o santo nome onze vezes! Caramba! A fantasia, a camuflagem e o embuste crescem na proporção exata do reacionarismo e da subserviência!” (Cláudio Campos, “A incrível prostração e o refinado fascismo de Fernando Henrique”, HP, 16/10/1996).
Graças aos céus, o povo brasileiro não tinha – e não tem - a mesma opinião sobre as eleições passadas. Mas que Mantega vem se esforçando para cumprir o seu próprio vaticínio, lá isso vem.
INVESTIMENTO
Nada do que os neoliberais professam tem o significado das palavras que usam. Assim, falam em “competição” e “concorrência” para referir-se ao monopólio mais selvagem. Susan George, no texto que citamos acima, observa algo com que nossos leitores já estão familiarizados: “o princípio de competição se aplica escassamente aos maiores atores do mundo neoliberal, as corporações transnacionais; preferem praticar o que poderíamos chamar de capitalismo de aliança. Não é acidental que - dependendo do ano - entre dois terços a três quartos de todo o dinheiro rotulado como ‘investimento direto estrangeiro’ não se dedique a investimentos criadores de novos empregos, mas a fusões e aquisições que quase invariavelmente resultam em perda de empregos” (grifo nosso).
Há muito se sabe disso. O próprio texto de Susan George já tem 12 anos. Mas isso não impede o ministro da Fazenda de propugnar – como o faz desde sua posse no cargo, em 2006 – que a solução para criar empregos no país é abri-lo para avalanches de “investimento direto estrangeiro”, isto é, para a compra de empresas nacionais por monopólios transnacionais.
Se dependêssemos disso, estávamos fritos. Ainda bem que o presidente Lula, contra Mantega, que achava o objetivo colocado pelo presidente (crescer no mínimo5% ao ano) um “exagero” – e continua achando, pois acabou de declarar que 5% é omáximo que o Brasil pode crescer - empreendeu o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), baseado não no “investimento direto estrangeiro”, mas nos investimentos públicos.
PRIVATIZAÇÃO
O neoliberalismo, portanto, não é uma teoria, mas uma crença dogmática, um fanatismo alucinado, algo inteiramente impermeável a argumentos lógicos.
Note-se que o centro de todo o talmude neoliberal durante 40 anos, a fábula da privatização, foi a primeira a ser desmoralizada. E não por acaso, pois a privatização de serviços públicos – telecomunicações, eletricidade, etc. - fizeram com que o povo vivenciasse qual era o conteúdo dessa miséria:
“Na realidade, quase todos os serviços públicos constituem o que os economistas chamam de ‘monopólios naturais’. Um monopólio natural existe quando o tamanho mínimo [da empresa] para garantir o máximo de eficiência econômica é igual ao tamanho real do mercado. (…) Os serviços públicos também requerem, no início, investimentos muito grandes em infraestrutura – como ocorre com as estradas de ferro ou as redes elétricas – o que não encoraja a competição. Por isso é que os monopólios públicos são a óbvia solução ótima. Mas os neoliberais definem qualquer coisa pública, ipso facto, como ‘ineficiente’. Então, o que acontece quando se privatiza um monopólio natural? Bastante normal e naturalmente, os novos proprietários capitalistas tendem a impor preços de monopólio ao público, enquanto remuneram ricamente a si próprios. (…) os preços são mais altos do que deveriam ser e o serviço ao consumidor não é necessariamente bom” [aliás, acrescentaríamos, pela própria lógica do monopólio, é inevitavelmente ruim. - CL] (Susan George, “A Short History of Neoliberalism”).
Foi exatamente o que aconteceu no Brasil, com consequências econômicas desastrosas – mas com uma consequência política alvissareira: defender a privatização passou a ser a antessala da morte eleitoral.
Porém, o repúdio à “privatização” não faz, obviamente, com que os neoliberais desistam de impor a sua malfadada receita, na qual, o mais notável é a escassez de pensamento. Rigorosamente, não existe pensamento no neoliberalismo. Existe uma litania, a repetição dos mesmos reclames, seja lá qual for a realidade, tal como em certos ritos religiosos obsessivos.
Já daremos um exemplo recente dessa repetição, desse rosário isento de pensamentos.
Antes do exemplo, uma questão mais de fundo: qual é a base real de um fanatismo que não pode dizer nada de verdadeiro sobre si próprio, que não ousa, muitas vezes, nem dizer o seu próprio nome, que nem tem pensamento algum que assim possa ser chamado, que usa as palavras como se fossem antônimos – e que quando o povo descobre a verdade, tem que fugir para a marginalidade do mundo político? Como pode isso existir? Como pôde se expandir, a ponto de ministros repetirem seus slogans sem mais questionamentos, baseados na pura fé de sua suposta verdade?
A base real é o mundo irreal das finanças, tal como se tornou após o rompimento do dólar com o padrão-ouro, na década de 70.
NIXON
Até então, o neoliberalismo era uma seitazinha insignificante de alguns chatos e doidos que se reuniam na sua loja maçônica. Na década de 70, o próprio presidente norte-americano que rompeu com o lastro-ouro do dólar, Richard Nixon, disse uma frase famosa: “agora, todos nós somos keynesianos”. Ou seja, o neoliberalismo era tão insignificante que Nixon se definia pelo seu contrário na economia política não-marxista.
Mas talvez seja melhor passar essa questão histórica a um especialista na matéria – não propriamente um historiador, mas um banqueiro norte-americano especializado em “fusões e aquisições”. A citação é longa, mas o leitor, certamente, não morrerá de tédio:
“... em 1970, o segundo ano de Nixon no governo, o crescimento desabou para quase zero, enquanto a inflação beirava 6%. O déficit federal em 1970 foi tão grande quanto qualquer um do período de Johnson. Uma tentativa de estímulo fiscal provavelmente resultaria em mais inflação. E ainda havia o problema do dólar. O compromisso americano de resgatar dólares à taxa de US$ 35 por onça (31 gramas) de ouro era o sustentáculo da estabilidade monetária mundial. Mas as reservas de ouro americanas estavam em queda (...). A solução proposta nos manuais de economia era elevar as taxas de juro para que os estrangeiros preferissem manter seus dólares. Mas, com a economia tão frágil, uma elevação das taxas poderia provocar uma forte recessão.
“Poucos políticos tinham o dom de Nixon para lances ousados. Em agosto de 1971, ele levou toda a sua equipe econômica de helicóptero para Camp David, para um fim semana que Herbert Stein, membro do Conselho de Assessores Econômicos do presidente, previu que ‘poderia ser a reunião mais importante na história da economia’ desde o New Deal. Na semana seguinte, Nixon anunciou que reduziria os impostos, imporia o controle de salários e preços em toda a economia, aplicaria uma sobretaxa de imposto sobre as importações e rescindiria o compromisso de resgatar dólares em troca de ouro. (…) O dólar chegou ao fim de 1971 a cerca de US$ 44 por onça de ouro. Ou seja, medida em ouro, os parceiros comerciais dos Estados Unidos tiveram uma perda de 25% em seus ativos. O Japão recebeu o golpe mais forte, porque tinha grandes reservas em dólar. (…) Os aumentos de preço do petróleo da OPEP, que ajudaram a desencadear a grande inflação da década de 1970, foram consequência direta da flutuação do valor do dólar. Em 1973, quando os países da OPEP triplicaram o preço do petróleo, o dólar caíra para cerca de US$ 100 por onça de ouro, ou aproximadamente um terço do valor anterior. Em 1979, quando a OPEP voltou a triplicar os preços, o dólar variou entre US$ 233 e US$ 578 por onça de ouro. Em termos de ouro, portanto, a OPEP ainda estava perdendo terreno. Em 1980, quando o dólar desabou para U$ 850 por onça de ouro, o preço do petróleo em ouro era o mais baixo até então. O verdadeiro problema era que os Estados Unidos tinham degradado sua moeda” (Charles R. Morris, “O Crash de 2008”, Aracati, trad. Otacilio Nunes, 2009).
O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (2)
O neoliberalismo não fracassou apenas (!?) na Inglaterra, no Chile, no México, na Ásia, na Rússia, na Argentina, etc. e etc. Fracassou também no Brasil, apesar (ou, mais exatamente, por causa) do arrocho salarial, do ataque aos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários, do importacionismo desvairado, da entrega de empresas públicas e privadas a monopólios externos, da especulação alucinada com os juros da dívida pública, da miséria, do desemprego e da fome. Quando Lula assumiu o governo, o país estava à beira do colapso
CARLOS LOPES
Aos leitores que desejarem uma exposição direta – e irretorquível – da combinação de vigarice e imbecilidade que constitui o neoliberalismo, recomendamos o documentário “Inside Job” - que acaba, aliás, de ganhar um Oscar – de Charles Ferguson, com a excelente narração de Matt Damon.
Nesse documentário são os próprios neoliberais que demonstram essa viciosa combinação. Por exemplo, os diretores daquelas “agências” que distribuem notas para o “risco Brasil” e “investment grade” para certos países declaram, no Congresso dos EUA, que suas classificações não valem nada, são uma “opinião” qualquer... Naturalmente, dizem isso para fugir à constatação, dos parlamentares que os interrogam, de que essas classificações são confeccionadas para burlar os incautos.
Esse terreno, o do mero trambique - ainda que em escala planetária - nos obriga a uma breve (nem tanto) interpolação. A novidade, evidentemente, não é a existência de vigaristas - ou a sistemática vigarice monopolista e financeira, incluindo a da mídia desses monopólios. Há 70 anos, o presidente Franklin Delano Roosevelt, ao intervir nas empresas de eletricidade dos EUA, afirmou que a ação do governo “se torna mais necessária porque não tem havido somente falta de informação e informação difícil de se entender, mas, sobretudo, como demonstrou a Federal Trade Commission, desenvolveu-se nos últimos anos uma campanha sutil, sistemática, deliberada e pouco escrupulosa, de falsa informação, de contra-propaganda e, se permite a palavra, de mentiras e falsidades” (cit. in Aristóteles Moura, “Capitais Estrangeiros no Brasil”, 2ª ed., Brasiliense, 1960, pág. 134).
A novidade, portanto, não é essa, mas o surgimento de tantos papagaios dessas mentiras e falsidades – sobretudo das já desmascaradas –, alguns até se dizendo (e acreditando-se) “de esquerda”.
Portanto, antes de continuarmos a partir do rompimento, pelos EUA, da relação entre o dólar e o ouro, acordada com todos os países capitalistas para que aceitassem a moeda norte-americana como “moeda internacional”, algumas observações ainda sobre o conteúdo da primeira parte deste artigo.
TRAGÉDIAS
O presidente da CUT, Artur Henrique, antes da posse do atual governo, fez, na revista Teoria e Debate, uma consideração importante:
“Algo que devemos ter sempre em mente é que Dilma não foi eleita para fazer o mesmo que Lula, e sim para fazer mais, para aprofundar as mudanças e as transformações iniciadas no governo anterior. Com esse horizonte nos comprometemos todos que fizemos campanha para sua eleição. Portanto, será preciso tomar certas decisões difíceis. (…) Por parte do futuro governo, e especialmente da presidenta Dilma Rousseff, a tarefa vai requerer grandes doses de sensibilidade social e confiança na capacidade de mobilização e compromisso de nossas bases. (…) A luta por um salário mínimo que não refletisse a crise econômica internacional de 2008/2009 – R$ 540 – mas sim que reconhecesse a capacidade dos trabalhadores brasileiros de terem vencido essa mesma crise, graças em grande parte ao próprio salário mínimo – R$ 580 – é simbólica do desafio das escolhas à frente”.
O presidente da CUT menciona que as “escolhas devem passar por continuar praticando taxas básicas de juros estratosféricas, ou incrementar as políticas sociais e redistributivas” e que “mesmo sob o argumento da necessidade de cortar gastos para ampliar investimentos, ideal sempre embalado pela ideia de responsabilidade fiscal tão ao gosto do mercado, a taxa básica de juros parece um risco no disco”.
Com efeito, essa “ideia de responsabilidade fiscal tão ao gosto do mercado” é a mera irresponsabilidade para com a sociedade, a nação, e para com o mercado - que não é composto apenas por bancos e outros especuladores financeiros. Quanto à “necessidade de cortar gastos para ampliar investimentos” (necessidade tão falsa que sua própria formulação é ridícula), as “despesas correntes”, os gastos com o “custeio”, são, precisamente, o que o governo gasta com o atendimento ao povo como consequência dos investimentos. É verdade que existem gastos que estrangulam os investimentos públicos – mas não são os gastos com o custeio, e sim com os juros da dívida pública.
Concordando com o presidente da CUT, gostaríamos apenas de ressaltar a motivação deste nosso artigo: contribuir para que o governo Dilma cumpra a expectativa de “aprofundar as mudanças e as transformações iniciadas no governo anterior”. Como já disse mais de uma vez a nossa presidente, embora o papel central caiba a ela, essa missão só é possível com a participação de todos - ou não alcançaremos a erradicação da miséria que ainda infelicita tantos brasileiros.
Depois de oito anos que foram, em essência, um avanço, não podemos, realmente, retroceder àqueles tempos em que o ministro da Fazenda, um certo Fernando Henrique Cardoso, “procurava disfarçar sua proposta de aumentar os juros com a afirmação de que eles só deveriam cair ‘com a (…) progressiva melhora das contas públicas’ (...)”, quando, na verdade, “o que as desequilibraria seria exatamente a manutenção dos juros em patamares elevados. Quanto às contas públicas, a ideia inicial era ceifar US$ 20 bilhões no gasto público, que correspondiam a 34,6% da receita líquida da União (descontando as operações financeiras e as transferências para Estados e municípios). Depois de muita pressão, reduziu o corte para US$ 6 bilhões; além disso, foi encaminhado um projeto de lei para o Congresso limitando as despesas com servidores em 60% da receita corrente da União, Estados e municípios. Propunha-se, também, um forte arrocho nos Estados e municípios” (Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, Alfa-Omega, 2004, pág. 482).
Isso aconteceu em 1993.
É natural que os líderes sindicais sejam dos primeiros a se preocuparem com os caminhos para o avanço do país. O movimento sindical é, em todo lugar, a antítese social do neoliberalismo. Exatamente por isso, Reagan, Thatcher, Pinochet, e, inclusive, Fernando Henrique, dedicaram-se a quebrar, esmagar, humilhar, se possível eliminar, ou, o que é praticamente a mesma coisa, dividir o movimento sindical. Sem isso, é impossível impor essa desgraça sobre a população.
Nesse sentido, é importante ressaltar que o neoliberalismo não fracassou apenas (!?) na Inglaterra, no Chile, no México, na Ásia, na Rússia, na Argentina, etc. e etc. Fracassou também no Brasil, apesar (ou, mais exatamente, por causa) do arrocho salarial, do ataque aos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários, do importacionismo desvairado, da entrega de empresas públicas e privadas a monopólios externos, da especulação alucinada com os juros da dívida pública, da miséria, do desemprego e da fome. Quando Lula assumiu o governo, o país estava à beira do colapso.
SALÁRIO
Mas, vejamos uma das “mentiras e falsidades” - para usar as palavras de Roosevelt, há sete décadas – impingidas pelo neoliberalismo.
Susan George, no texto que citamos na primeira parte deste artigo, aponta que o “investimento direto estrangeiro” (IDE) – a tomada de empresas públicas e privadas pelos monopólios privados dos países centrais – tem como efeito a redução do emprego, em bom português, o aumento do desemprego. As ex-estatais privatizadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso são um exemplo gritante, como também as empresas privadas brasileiras que se tornaram filiais de monopólios transnacionais.
Esta diminuição de emprego, bem entendido, não se deve, hoje em dia, a uma maior mecanização, automatização ou informatização no processo produtivo das empresas desnacionalizadas. O desemprego que se segue às atuais invasões de IDE nos países dependentes é uma consequência, sobretudo, da intensificação do trabalho físico e - o que é uma forma dessa intensificação - da precarização do trabalho, sob várias formas, inclusive (e, talvez, sobretudo) as terceirizações.
Em suma, passa-se a fazer com menos empregados o que antes se fazia com mais empregados. Daí, os programas de demissão – compulsória ou cinicamente apelidada de “voluntária” (isto é, demissão sob chantagem).
Porém, resta dizer que não somente o emprego é reduzido quando se deixa o IDE tomar a economia, mas também o salário. E não somente (o que já seria gravíssimo) porque, pelo mesmo salário, aqueles que mantêm o emprego passam também a fazer o trabalho daqueles que o perderam, ou porque, evidentemente, o aumento do desemprego pressiona o salário real para baixo.
Em “A Longa Agonia da Dependência”, Nilson Araújo de Souza mostra como as invasões do capital estrangeiro na economia brasileira provocaram, sempre, a queda do salário real. O motivo mais geral é bem óbvio: ao tomar empresas nacionais, uma transnacional não se contenta com o atrativo inicial, isto é, com os salários mais baixos em relação ao seu país de origem. Ela procura rebaixar ainda mais os salários, pois, quanto menores eles forem, mais lucros uma filial poderá remeter para sua matriz – e essa é, exatamente, a medida da eficiência de uma filial.
Embora pareça evidente, nos tempos de hoje somos obrigados a relembrar que “o capital exportado procura obter no país que o recebe uma taxa de lucros superior à do país que o exporta. Esse é um fato notório e de graves consequências políticas”(Aristóteles Moura, op. cit., pág. 123).
A questão, repetimos, é que a principal função de uma filial é remeter lucros para a matriz, como sabe qualquer lojista que queira expandir o seu negócio além da área original de sua empresa. Mas, diferente de uma pequena rede de lojas, as filiais de multinacionais remetem lucros para fora do país, ou seja, para onde o nível salarial, assim como a taxa de lucro, não são os mesmos do lugar onde está a filial.
Obviamente, interessa à multinacional que essas diferenças entre níveis salariais e taxas de lucro sejam as maiores possíveis – e, certamente, a multinacional não pretende aumentar a diferença pela elevação dos salários na matriz e/ou pela diminuição da taxa de lucro no seu país de origem, até porque isso de nada serviria ao seu objetivo econômico. Multinacionais são monopólios, isto é, seu objetivo, ao contrário das empresas não-monopolistas, não é apenas o lucro, mas, sempre, o lucro máximo.
Por isso, as filiais de multinacionais sempre farão o possível para reduzir o salário real. Há quem diga que esse é o interesse de qualquer empresa. Não é verdade. As empresas nacionais não-monopolistas dependem objetivamente (isto é, seja qual for a consciência que seus donos tenham disso) do nível geral dos salários para vender seus produtos. Sem que o conjunto da população – ou o Estado, cujo dinheiro depende do conjunto da população - tenha poder aquisitivo para adquiri-los, essas empresas são inviáveis.
O mesmo não acontece com as multinacionais, exatamente porque são monopólios, portanto, exploram uma faixa estreita do mercado - aquela com renda para pagar sobrepreços (ou seja, preços acima do valor das mercadorias). Para essas empresas, o melhor é que o nível geral dos salários seja baixo, com uma alta concentração de renda numa parcela relativamente pequena da população.
Isso, evidentemente, acaba levando à crise – como, aliás, lembrou um economista chamado Guido Mantega em um livro intitulado “Acumulação Monopolista e Crises no Brasil”. Mas isso foi em 1979.
Nos países dependentes, como o Brasil, há outro problema além da remessa de lucros. Como demonstrou, entre outros, Aristóteles Moura, a acumulação da própria filial da multinacional é feita não com investimentos vindos da matriz, mas com os lucros que obtém no país em que está instalada. Em outras palavras, além de remeter lucros para sua matriz, a filial tem que extrair lucros que permitam algum reinvestimento – seja simplesmente para repor o desgaste do maquinário, seja para expandir-se no país onde está instalada. Toda ou quase toda a expansão de uma filial de multinacional é baseada não em investimentos externos da matriz, mas em lucros obtidos no país onde está essa filial (cf. Aristóteles Moura, op. cit., págs. 35 e seg.). Somada à remessa de lucros, esse é mais um fator que faz com que as filiais de multinacionais joguem, todo o tempo, para reduzir o salário real.
Ainda que, em parte, esteja implícito no que acabamos de expor, não entraremos aqui, por desnecessário para os objetivos deste artigo, na tendência a deprimir a taxa de lucro, que é acelerada pela monopolização da economia. Basta dizer que o arrocho salarial é a resposta evidente dos monopólios a essa tendência – e remeter o leitor ao livro de Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, onde poderá encontrar uma boa exposição do problema.
NO BRASIL
O “investimento direto estrangeiro” (IDE) como solução para o desenvolvimento dos países dependentes é uma das mais deslavadas imposturas do neoliberalismo. Como pode algo com as características que acabamos de apontar ser considerado – inclusive por nosso atual ministro da Fazenda – benéfico e decisivo para o país, isto é, para o seu crescimento?
Durante os oito anos do governo Fernando Henrique, entrou 2,6 vezes mais IDE (US$ 163,45 bilhões) do que o estoque acumulado em toda a história do país até 1994 (US$ 61,82 bilhões - cf. UNCTAD, “Inward FDI stock, by host region and economy, 1980–2009”).
Depois do início da campanha de Mantega pelo “investment grade”, entraram mais US$ 154 bilhões – e o estoque de IDE, em 2009, havia mais do que sextuplicado em relação a 1994, passando de US$ 61,82 bilhões para US$ 400,81 bilhões (cf. UNCTAD, loc. cit.).
Do ponto de vista do estoque total de capital, isto é, da propriedade estrangeira em relação ao capital fixo total das empresas que existem no país, isso representou um aumento de cinco vezes – a propriedade estrangeira passou de 4,8% do estoque total de capital fixo (máquinas, equipamentos e edificações) para, aproximadamente, 22,5% (v. “Desnacionalização atinge 22,5% do estoque de capital fixo do país”, HP, 05/11/2010), sem contar as participações acionárias de menos de 10% de capital estrangeiro – que, pelos critérios atuais do FMI e do BC, não são classificadas como “investimento direto”.
No entanto, apesar dessa avalanche, foi necessário que o presidente Lula implementasse uma vigorosa política de investimentos públicos para que o país conseguisse crescer – e empregar milhões de brasileiros. O “investimento direto estrangeiro” foi um fracasso naquilo que interessa ao país.
Então, em que esse tsunami de IDE foi bem sucedido?
Primeiro, em aumentar as remessas de recursos para fora do Brasil: o envio de lucros fez as remessas totais subirem, de uma média anual de US$ 13,424 bilhões no período 1979-1994, para uma média de US$ 33,603 bilhões no período 1995-2010 (cf. BC, “Balanço de Pagamentos 1947-2010”).
As remessas, como é óbvio, aumentaram em relação ao IDE cumulativamente - ou seja, as empresas desnacionalizadas no governo Fernando Henrique continuaram a remeter lucros para fora do país no governo seguinte, somadas às que foram desnacionalizadas posteriormente.
Por isso, de US$ 98,931 bilhões nos oito anos anteriores ao governo Fernando Henrique, o total de remessas aumentou para US$ 194,325 bilhões (1995-2002), e, nos oito anos posteriores, para US$ 343,423 bilhões (2003-2010). E, quando existe uma crise nos países em que essas multinacionais têm as suas matrizes - e um câmbio que permite a troca de reais por cada vez mais dólares no país onde têm a sua filial - essas remessas vão para o pico do Everest: num único ano, em 2010, foram a US$ 70,630 bilhões.
Segundo sucesso da enxurrada de IDE: o aumento das importações.
De uma média anual de US$ 21 bilhões (1987-1994), as importações subiram para uma média de US$ 53,573 bilhões (1995-2002), e, depois, para uma média anual de US$ 109,895 bilhões (2003-2010).
Hoje em dia, a segunda atração, logo depois dos baixos salários, para uma multinacional ter uma filial em outro país é, exatamente, a de estabelecer um entreposto importador nesse outro país. As filiais de multinacionais são montadoras – e montam produtos, sejam carros ou dentifrícios, a partir de componentes e insumos importados. Não há nenhuma novidade nisso (ver, p. ex., um estudo de 14 anos atrás: Luciano Coutinho, “A especialização regressiva: um balanço do desempenho industrial pós-estabilização”, in “Brasil: desafios de um país em transformação”, José Olympio, 1997).
Daí, a explosão de importações que acompanhou a enxurrada de “investimentos diretos estrangeiros” – sobretudo importações de “bens intermediários”, isto é, componentes para a indústria, que hoje constituem quase metade (47%) das importações no Brasil.
O resultado é que essas importações ameaçam as contas externas do país. Já fornecemos as médias anuais. Agora, os totais: de US$ 168 bilhões e 510 milhões (1987-1994), as importações subiram para US$ 428 bilhões e 586 milhões (1995-2002) e, depois, para US$ 879 bilhões e 159 milhões (2003-2010).
Em menos de quatro anos, Fernando Henrique já havia explodido as contas externas com o aumento das remessas e das importações. As dificuldades atuais, resultado das ilusões no IDE vendidas pelo neoliberalismo, são uma demonstração extra, e candente, do problema. A solução de Mantega para as consequências da entrada descontrolada de IDE é frear o crescimento da economia para não estourar as contas externas – e continuar o privilegiamento da desnacionalização. O que só levará a outras freadas.
O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (3)
Continuação da edição anterior
O neoliberalismo é uma lista de panaceias. Aliás, é a única doutrina, até hoje, que tem mais de uma panaceia. Nisso ele superou em muito os vendedores de elixir do Velho Oeste
CARLOS LOPES
O historiador inglês Perry Anderson relata algo muito interessante:
“Recordo-me de uma conversa que tive no Rio de Janeiro, em 1987, quando era consultor de uma equipe do Banco Mundial e fazia uma análise comparativa de cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a presidência de Sarney não era uma taxa de inflação demasiado alta – como a maioria dos funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava –, mas uma taxa de inflação demasiado baixa. ‘Esperemos que os diques se rompam’, ele disse, ‘precisamos de uma hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que falta neste país’.” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, grifos nossos).
Mais interessante ainda foi o que aconteceu, logo depois, no Brasil.
Após a posse no Ministério da Fazenda, em dezembro de 1987, do sr. Maílson da Nóbrega – que chegara em maio ao Brasil, depois de dois anos na Inglaterra, de onde saiu um neoliberal tão consumado quanto néscio - a inflação mensal, medida pelo INPC, pulou de 13,97% (dez/1987) para 82,18% no último mês de sua gestão (março/1990). Durante esse período, Maílson congelou salários, confiscou recursos de cadernetas de poupança e aposentadorias, bloqueou gastos públicos, extinguiu órgãos do governo e até tentou privatizar as estatais. Nas suas próprias palavras, “foram dados os passos fundamentais para a abertura da economia, as privatizações e a modernização das finanças nacionais”.
A inflação anual triplicou em 1988, chegando a 993,28%; e dobrou em 1989, para 1.863,56%. Em dois anos, a política supostamente “anti-inflacionária” do sr. Maílson quintuplicou a inflação (mais exatamente, foi multiplicada por 4,7).
Pode ser que tudo isso se deva apenas ao fato de Maílson, que hoje destila a sua sapiência econômica na “Veja”, ser um rematado incompetente. Mas, como dizia aquele personagem de Cervantes, “pero que las hay, las hay”. Segundo Maílson, tudo o que ele fez estava certo: a inflação só não baixou por culpa do Congresso, dos seus colegas ministros, dos governadores, dos empresários nacionais, dos sindicatos de trabalhadores e até da Rede Globo – se não fossem eles, seu plano seria um sucesso...
Mas foi esse ambiente, envenenado por uma inflação de quase 2000%, que forneceu o caldo de cultura para a instalação do neoliberalismo, com todo o seu cortejo de gangsters, no poder, abanado por uma mídia completamente sem escrúpulos, antidemocrática, antinacional e antipopular.
Resta explicitar que também foi esse ambiente que fez com que aberrações como o Plano Collor e o Plano Real fossem impostas sem gerarem imediatamente um repúdio geral, apesar de implicarem na destruição do que o país construíra por seis décadas, inclusive parte de seu povo. A inflação tornou-se um espantalho para a chantagem neoliberal. Mais adiante, analisaremos o atual sistema de metas de inflação. Por agora, frisamos que seu evidente absurdo só não é percebido por causa do esmagamento diante do terrorismo, só possível depois dos acontecimentos do final da década de 80, em torno de uma fantasiosa ameaça de surto inflacionário.
OBSCURANTISMO
O neoliberalismo é uma lista de panaceias. Aliás, é a única doutrina, até hoje, que tem mais de uma panaceia. Nisso ele superou em muito os vendedores de elixir do Velho Oeste. Há pelo menos 10 panaceias, segundo o rol e incensado pelo inventor do Consenso de Washington (cf. John Williamson, “A short history of the Washington Consensus”, in conf. “From the Washington consensus towards a new global governance”, Barcelona, set./2004).
Em suma, em vez de teoria - esse produto do pensamento - o neoliberalismo não chega nem àquela vulgaridade apelidada de economia política “neoclássica”. Ele tem prescrições, e nenhuma preocupação em fundamentá-las. Pelo contrário, a preocupação é fugir de qualquer fundamentação e passar essas prescrições como óbvias, como as únicas possíveis. Não por acaso, quando os neoliberais, ao modo do sr. Meirelles, falam em “fundamentos”, sempre estão se referindo às suas próprias panaceias, cujo fundamento são elas mesmas.
Torna-se, assim, mais compreensível porque sempre o significado das palavras é pervertido pelos neoliberais, assim como seu ódio à qualquer vestígio de ciência, que faz lembrar o grito de guerra do fascista Millán-Astray: “¡Muera la inteligencia!”.
Tomemos como exemplo, outra vez, o “investimento direto estrangeiro” (IDE), a que nos referimos na parte anterior deste artigo.
O IDE – isto é, a penetração de empresas estrangeiras – sempre foi considerado, desde o século XIX, um problema para as economias dependentes ou coloniais, agravado pelo surgimento das multinacionais, ou seja, do capitalismo monopolista nos países centrais.
Se o leitor consultar qualquer trabalho sobre o assunto, por exemplo, a partir da década de 40 do século passado, verá que toda a literatura econômica é unânime em constatar que as multinacionais são um freio para o desenvolvimento dos países que não fazem parte do centro do sistema.
Não são apenas os autores “de esquerda” - por exemplo, o brasileiro Aristóteles Moura, nos seus extraordinários livros “O Dólar no Brasil” (1956) e “Capitais Estrangeiros no Brasil” (1959) - que chegaram a essa conclusão, ou os trabalhos dos pesquisadores norte-americanos da Labor Research Association - “Monopoly Today”(1950) e “Billionaire Corporations” (1954).
A própria ONU, já em 1949, no estudo “Les Mouvements Internationaux de Capitaux entre les deux Guerres”, apontava o problema já no período 1918-1939, ao que se seguiria uma série de outros trabalhos - sem contar os da Cepal, que também é um órgão da ONU.
Tomemos, para encerrar essa brevíssima recensão dos estudos sobre o tema, um famoso livro de alguém que não pode ser acusado nem mesmo de suspeita de ter relação com a “esquerda”, o economista norte-americano Raymond Vernon, professor de Harvard, ex-membro da equipe do Plano Marshall, um dos idealizadores do FMI e do GATT, funcionário durante décadas do Departamento de Estado e da SEC (a agência que, presumivelmente, cuida das Bolsas de Valores dos EUA).
Trata-se de um estudo empírico, publicado por Vernon em 1971, “Sovereignty at Bay: The Multinational Spread of U.S. Enterprises”, traduzido no mundo todo (inclusive no Brasil, já em 1978: “Soberania Ameaçada: A Expansão Multinacional das Empresas Americanas”; não conhecemos a tradução, mas ela foi bastante citada em trabalhos acadêmicos).
Pois bem, apesar do professor Vernon mostrar horror a tudo o que ele acha que é ideológico (como se ele mesmo não tivesse alguma ideologia), suas conclusões são semelhantes aos demais trabalhos sobre o assunto – o que está expresso no título que deu ao seu livro, apesar de, 10 anos depois, ter-se declarado arrependido por esse título. Mas não o mudou, embora tempo não lhe faltasse para fazê-lo, até seu falecimento, em 1999.
As únicas exceções a essa constatação sobre o IDE, naturalmente, eram os agentes diretos do capital estrangeiro como Gudin, Roberto Campos, Martínez de Hoz e seus equivalentes em outros países, todos alucinados por uma ditadura, que levaram as economias dessas nações, sob regimes tão entreguistas quanto repressivos, à bancarrota.
Não é difícil explicar porque, da década de 80 em diante, tenham aparecido tantos elementos propugnando que o melhor para as economias da América Latina, da África, da Ásia, do Leste europeu, é entregá-las ao arbítrio do capital norte-americano, ou germano-anglo-francês, ou japonês. A correlação de forças mundial é suficiente para explicá-lo – como na conhecida descrição de Lenin sobre o período de contrarrevolução que sucedeu 1905, “desânimo, desmoralização, cisões, dispersão, deserções, pornografia em vez de política. Fortalecimento da tendência para o idealismo filosófico, misticismo como disfarce de um estado de espírito contrarrevolucionário”. Afinal, como escreveu em outra ocasião – a da I Guerra Mundial – o mesmo autor, “toda crise na vida dos homens levanta alguns e abate outros”.
Mas é necessário voltar à própria história do que veio após o rompimento, pelos EUA, da relação entre o dólar e o ouro, para entendermos como uma mera série de slogans se impôs como ideologia desse período. No entanto, o que houve foi uma espécie de fusão entre uma ideologia preexistente, cinzenta, apagada e sem importância, com o que havia de mais reacionário, parasita e anti-humano nos países centrais: a cúpula dos bancos e demais antros especulativos, as aves de rapina do cartel bélico, os saqueadores do cartel do petróleo e assemelhados. Vejamos, então, o surgimento dessa ideologia.
O TRUQUE
O neoliberalismo está associado, com razão, ao nome de Friedrich von Hayek. Esse austríaco era, na década de 30 do século passado, um saco de pancadas nos debates econômicos. O que ele fez depois só pode ser compreendido como uma manobra desonesta para eludir essas derrotas – e uma tentativa auto-ilusória de tornar-se imune à crítica.
Essa manobra consistiu em desistir de fundamentar suas concepções, já consideradas ultrarreacionárias naquela época, transformando-as numa crença sem nem ao menos uma teologia que procurasse sustentá-la. Com isso, Hayek abandonava as pretensões teóricas para adentrar no terreno da mera propaganda enganosa.
Como se pode criticar um credo sem demonstrar a falsidade do seu fundamento? Ao eliminar o último, Hayek pretendia escapar da crítica.
Evidentemente, a crítica mais demolidora a uma crença sem fundamento é a demonstração da sua falta de fundamento. Mas Hayek estava contando com uma vantagem não acessível aos seus oponentes: a mídia, que dispensa qualquer fundamento para afirmar as maiores barbaridades.
Mas voltemos ao início da carreira de Hayek.
Sua derrota mais estrondosa foi numa polêmica contra o economista polonês Oskar Lange sobre a possibilidade de uma economia planificada – o “debate sobre o cálculo socialista”, em 1936.
Lange jamais foi um grande marxista. Pelo contrário, demonstrou em suas obras um entendimento no mínimo duvidoso sobre a teoria do valor - e sua concepção da sociedade socialista é basicamente aquilo que depois seria chamado, com infausto destino, “socialismo de mercado”.
Apesar dessas debilidades (que, aliás, só apareceriam plenamente em obras posteriores), Lange, no debate, demonstrou que a suposta impossibilidade do planejamento econômico, levantada por Hayek, era uma falácia. E, o que foi o golpe de misericórdia, Lange expôs o ridículo da posição de seu oponente, ao observar que, se o fundamento da teoria então defendida por Hayek, era que a oferta e a procura entram sempre em equilíbrio no “livre mercado” porque as decisões do homo economicus são sempre racionais (portanto, previsíveis), essa racionalidade tornaria o planejamento consciente da economia não só possível, como desejável. Levando às últimas consequências esse raciocínio, Lange mostrou que tal racionalidade dispensaria o “livre mercado”, pois ele seria completamente desnecessário se as decisões do indivíduo fossem sempre previsíveis. Nesse caso, inclusive, seria mais eficiente uma economia planificada sem qualquer mercado.
Com isso, Hayek ficou embaraçado pelo próprio fundamento da doutrina “neoclássica” de que, na época, era adepto – e o debate se encerrou com a acachapante vitória de Lange e dos marxistas.
O segundo debate mais importante em que Hayek se envolveu, foi com John Maynard Keynes. Nessa época, Hayek recém chegara à Inglaterra – e foi logo brigar com Lord Keynes, então em ascendente prestígio, que o levaria a ser o mais renomado economista não-marxista nas décadas posteriores.
A questão em debate pode ser formulada em termos simples: “foi uma significativa contribuição de John Maynard Keynes ao pensamento econômico sugerir que a economia moderna bem pode entrar num equilíbrio de desemprego e baixo desempenho. Este foi o fato vívido da Grande Depressão” (Galbraith, “A Journey Through Economic Time”, 1ª ed., 1994, pág. 229).
Em outras palavras: a economia capitalista, na época dos monopólios, não sairia da crise por si própria, mas somente com a intervenção do Estado.
Foi essa “sugestão” de Keynes que Hayek resolveu contestar – seguindo também os “neoclássicos” e outros idólatras do mercado, segundo os quais, na crise iniciada em 1929, como disse Schumpeter, se nada se fizesse, tudo se resolveria. O fato de que isso implicava na morte por fome de milhões de pessoas não era algo que preocupasse esses economistas. Muito menos que, como ressaltava Keynes, nem assim estaria garantida a saída da crise.
Keynes não precisou se esforçar para vencer o debate – a economia capitalista, então na pior fase da crise, ganhou o debate para ele. Mas a realidade, é forçoso reconhecer, nunca foi um impedimento para Hayek.
Assim, massacrado por marxistas e keynesianos, Hayek renegou os fundamentos dos “neoclássicos” - ou qualquer outro - e, pouco antes do fim da II Guerra, em 1944, publicou um livro que é o marco inicial do neoliberalismo: “The Road to Serfdom” (O Caminho da Servidão).
Como qualquer um que o leia pode comprovar, esse livro é um panfleto – foi escrito para a campanha do Partido Conservador contra o Partido Trabalhista. A tese central é que qualquer forma de coletivismo, qualquer ideia de justiça social (“justiça distributiva”), qualquer aspiração “a uma distribuição mais justa”, vale dizer, qualquer preocupação social, é uma tirania e leva a uma ditadura. Liberdade é a mesma coisa que um suposto “livre mercado”, sem intervenções, controle nem regulações do Estado ou da sociedade. Em suma, Hayek pintava a ditadura dos monopólios – pois o único “mercado” que existe no capitalismo dos países centrais é aquele manietado por esses monopólios – como o reino da liberdade.
Como panfleto eleitoral, foi um fracasso: o Partido Trabalhista ganhou as eleições, apesar do líder conservador ser Winston Churchill, que governara o país durante a guerra.
Mas, por que Hayek diz que a preocupação com a justiça social é uma tirania? Obviamente, porque, na sociedade, quem deve prevalecer são os “mais capazes”. A igualdade é um ideal “tirânico” exatamente porque tiraniza os mais capazes. A liberdade seria, portanto, sinônimo de desigualdade.
É essa a defesa da democracia feita por Hayek, bastante coerente com sua declaração, 37 anos depois, ao passar em revista o seu paraíso neoliberal (o Chile, sob a ditadura de Pinochet): “Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal do que um governo democrático carente de liberalismo” (El Mercurio, 12/04/1981, entrevista, págs. D8/D9).
Vários autores, inclusive Paul Sweezy e John Kenneth Galbraith, já puseram em ridículo esse livro – portanto, aqui apenas observaremos que os “mais capazes” de Hayek são sempre os mais capazes de especular, os mais capazes de bajular, os mais capazes de roubar, os mais capazes de trair, os mais capazes de pisar no pescoço dos outros para se dar bem, os mais capazes de ser insensíveis diante de outro ser humano, etc., etc.
Por isso é que os neoliberais pregam a “desregulamentação” de tudo e vivem berrando por um “Estado indutor” que garanta um “ambiente de negócios” que estimule esses “mais capazes”, isto é, que deixe à solta a sua atividade antissocial. Senão, é uma terrível tirania.
Observemos que Hayek, nesse livro, desiste de qualquer fundamentação econômica – ele mesmo diz que seu suposto argumento é apenas “político”, isto é, consiste apenas em propaganda anticomunista e reacionária.
Na época, a reação até que fez um esforço para promover esse livro – a Universidade de Chicago, uma das obras filantrópicas de John D. Rockefeller, publicou uma edição nos EUA e um ex-comunista que se tornara um fanático anticomunista, logo depois um macartista dos mais assanhados, publicou uma condensação no Reader’s Digest.
Mas esse tipo de publicidade somente fez com que o livro fosse encarado como o que realmente era: um panfleto delirante, em seu direitismo troglodita, escrito por um autor capaz de criticar Hitler por ser demasiado “de esquerda” (literalmente: “o que levou [o nazismo] ao totalitarismo não foi o elemento especificamente alemão, mas o elemento socialista”).
Hayek e a sua seita continuariam a amargar sua apagada mediocridade pelos próximos 35 anos, mesmo depois que “três anos depois, em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. (…) Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. (…) Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. (…) eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em si” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”).
Alguns autores, inclusive Galbraith, chamaram isso de “darwinismo social”. Em respeito a Darwin, que não tem nada a ver com isso, achamos o nome inadequado. Na verdade, o mais preciso seria chamá-lo de neo-nazismo.
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