Tuesday, September 28, 2010

Nacionalismo brasileiro e suas raízes históricas (1)


O texto que publicamos nesta e nas próximas edições é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos.
  “Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro” é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré.
Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré.
  O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.
  A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos “nacionalismo” e “nacional-desenvolvimentismo”. Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão:  “A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos” (grifo nosso).
  Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias - continua no mesmo terreno.
  Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida.
  Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram “nacionalismo de fins” (hoje se diria “nacionalismo de resultados”).
  Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro “O nacionalismo na atualidade brasileira” é muito fácil perceber hoje que o “nacionalismo de fins” era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à “eficácia técnica”. Em nome desta, os adeptos do “nacionalismo de fins” aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais.
  Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse “desenvolvimentismo sem nacionalismo”, como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do “nacionalismo de fins” - levado às suas últimas consequências, o “nacionalismo de fins” tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação.
  Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo - de Jaguaribe e outros.
  A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista.
  Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou.
  No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação.
  Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar.
CARLOS LOPES
NELSON WERNECK SODRÉ
Em obediência a uma praxe estabelecida no ISEB, cabe-me pronunciar a aula inaugural, iniciando o contato com os estagiários neste novo ano de atividades regulares. Decidiu a Congregação, e me parece que acertadamente, versasse esta palestra matéria pertinente ao curso que me cabe desenvolver e atendesse ao interesse generalizado que o Nacionalismo vem despertando entre nós. Qualquer que seja a posição face a esse fenômeno central da vida política brasileira, nos dias que correm, não há dúvida que representa um fato de importância indiscutível, configurando um quadro em que essa posição deixa de ser indiferente para ser militante. Só os fenômenos cuja grandeza se traduz por semelhante generalidade e profundidade podem tornar-se divisores de águas. O Nacionalismo, no Brasil, atingiu tal magnitude. Cumpre, pois, analisar as suas raízes, uma vez que, na vida das coletividades, nada acontece por acaso, tudo tem o seu momento próprio e decorre de condições concretas. A tarefa que me cabe, pois, resume-se em demonstrar, pela análise histórica, que o Nacionalismo não só tem raízes profundas entre nós, como ainda, o que é fundamental, só poderia ter ocorrido agora, e não antes, e não poderia deixar de apresentar-se, nesta fase, com a força que não lhe podem negar, mesmo os seus mais ferrenhos adversários. Entre estes cumpre, desde logo, situar, como esmagadora maioria, os equívocos – aos quais se aplica a frase já bastante conhecida que os define como os que “perderam o fio da história”.
  Em todos os momentos, na vida individual como na vida coletiva, há, realmente, uma contradição entre o que está morrendo e o que está nascendo, entre o que pertence ao passado e o que pertence ao futuro. Quando o que nasce adquiriu a força necessária para vencer a resistência do que morre, diz-se que “perderam o fio da história” aqueles que se apegam ao que morre. Os últimos desaparecem com o próprio passado. Vivem agarrados ao que se dissolve a cada dia, defendendo-se por vezes bravamente, e outras vezes valendo-se apenas de teorias confusas, formulações abstratas e doutrinações subjetivas, em que, não raro, existe o brilho aparente do virtuosismo e uma esmerada técnica no tratamento dos assuntos. Essa desumanização dos especialistas é, certamente, um dos espetáculos mais tristes da luta entre o que está morrendo e o que está nascendo, no Brasil de hoje, e não espanta nem surpreende que o insulamento em determinado campo específico se assemelhe tanto à defesa de baluartes largamente protegidos por obras artificiais, o fosso, a levadiça, a seteira, de que foi pródiga a crônica medieval.
  Humanizar o especialista é, assim, uma das tarefas a que a renovação dos estudos brasileiros se vem propondo, obrigando-o a olhar o que se passa em redor, a sentir a realidade, a compreender aquilo que não está nas suas fórmulas, a responder adequadamente ao concreto, fora de cujo campo tudo definha e se corrompe. O novo corresponde, por isso mesmo, a uma visão de conjunto, em que as partes se compõem na sua relatividade, e denuncia todas as ideias como historicamente condicionadas, isto é, peculiares a determinado tempo e a determinado meio, e jamais eternas e absolutas, receitas universais diante das quais todos se deveriam curvar sem análise.
  Quando determinada formulação, como encantatória, polariza as atenções, ganha o pensamento da generalidade e aprofunda os seus efeitos, nega-la é mais do que uma infantilidade, porque é um erro. Os que, ante o Nacionalismo, que agora empolga nosso País, se coloca na atitude irônica, cética ou negativista, denunciam o rompimento com a realidade, o desprezo pelo concreto, a aversão ao objetivo – “perderam o fio da história”.
  Seria difícil fazer a análise desse fenômeno político acompanhando a sua lenta e laboriosa gestação, quase sempre inconsciente. Na impossibilidade de apresentar, na sequência ininterrupta a que o cinema nos habituou, o desenvolvimento daquela gestação, até a sua passagem do domínio inconsciente para o domínio consciente, quando se incorpora à realidade e afeta todas as suas manifestações, preferimos a técnica dos cortes. No largo, agitado e aparentemente confuso evolver da vida brasileira, selecionamos três cortes apropriados, em três fases características de transformação institucional: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Pela simples comparação dos quadros, verificaremos o que era novo em cada momento, e o que era velho, e como, inevitavelmente, o velho cedeu lugar ao novo – e que o novo de determinada etapa passa a ser o velho da futura, e assim se desenvolve a história, e por isso mesmo é que é história.
  Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes, no Brasil, e esclarece que, no total, cerca de um milhão e duzentos mil são escravos. Para fins de raciocínio, admitamos que a população tenha sido esta, numa faixa de tempo que vai da segunda metade do século XVIII aos dois primeiros decênios do século XIX – a faixa em que se processa a autonomia. Ela não acontece por acaso: assim como a descoberta e o povoamento foram consequência da Revolução Comercial, a Independência está vinculada à Revolução Industrial. É a Revolução Industrial que exige a ruptura do regime de monopólio de comércio, que era a própria razão de ser da dependência, naquela fase, em relação à metrópole. Que é a colônia, na segunda metade do século XVIII? Tínhamos atingido, geograficamente, a desmedida expansão territorial que hoje é uma das bases de nossa força. Os limites estabelecidos pelo Tratado de Madrid são, mais ou menos, os limites do Brasil atual.  O povoamento, entretanto, é ganglionar e, nessa imensidade territorial, apenas algumas áreas têm vida econômica ativa. No extremo norte, há uma atividade meramente coletiva, propiciada pelo quadro das especiarias amazônicas e que será substituída pelo primado do algodão maranhense. No Nordeste, prevalece o regime escravista, com a produção açucareira atravessando uma crise que provém da concorrência, que a metrópole agrava com as taxas, e da valorização do escravo, acarretada pela mineração. No Centro, a atividade mineradora inicia o seu declínio, depois de ter aberto as perspectivas de um mercado interno que impulsiona inclusive a circulação terrestre, com os tropeiros, os registros e o sistema fiscal extorsivo imposto pela Coroa. No Extremo Sul, com o advento da charqueada, a carne apresenta-se agora como bem econômico; em vez de lutar apenas pelo gado, o gaúcho terá de lutar também pelas pastagens; os campos começam a sofrer a apropriação, surgem os aramados e o espaço livre fica reduzido aos “corredores”. Toda a produção colonial se destina aos mercados externos, salvo o charque. Nela avulta, pelo seu caráter específico, o ouro. É a mineração, realmente, que inaugura uma etapa diferente na vida brasileira do século XVIII.
  O sistema colonial fundamentara-se, desde o início, no binômio terra-escravo – mas é inegável que o escravo era mais importante do que a terra, era mesmo a mercadoria por excelência. O desenvolvimento açucareiro articulava-se numa divisão de atividades e de lucros: ao senhor territorial pertencia a produção, à metrópole pertencia a circulação. Enquanto essa divisão funcionou de modo a proporcionar vantagens a cada uma das partes, a classe dos senhores de terras e de escravos, que era a classe dominante, funcionou na colônia como mandatária da metrópole, era a sua procuradora natural, a sua representante, uma vez que os interesses eram comuns. Ora, tal divisão não ocorreu na área mineradora: a metrópole operou a fundo uma total invasão do domicílio do explorador direto, fazendo-se dona do que era produzido e da transformação do que era produzido em valor. Não existiu, assim, na área mineradora, a mesma comunhão de interesses entre a classe dominante e a Coroa. Os motins sucessivos assinalam essa contradição. Ao aproximar-se o fim de século, a Inconfidência Mineira revela o clima que ali se criara.
  Do ponto de vista social, a população se repartia em senhores de terras e de escravos, que compunham a classe dominante, e pessoas livres, que não viviam da exploração do trabalho de outrem, constituindo-se uma camada social instável, sem função na estrutura vigente e sem qualquer poder político. O aumento numérico dessa camada intermediária – uma vez que depois dela vinha o escravo, sem nenhum direito, objeto de troca e instrumento de trabalho – constitui o fenômeno importante da segunda metade do século XVIII. Tal camada constitui o mercado interno que aparece no centro-sul. Uma parte gera a incipiente vida urbana que então começa marcar o quadro colonial; outra parte vai operar a transição do regime escravista para o regime feudal e semifeudal, que o substitui em vastas áreas, particularmente no interior. O elemento livre, insuscetível de escravização, transforma-se em servo. A parte que vive nas vilas e cidades, e que forma o grosso dos quadros administrativos, representa a fração instável, que alimenta as conspirações e os motins. No quadro minerador, ela tem importância – como no sul pastoril – porque preenche determinadas funções, a militar, a religiosa, a judiciária: a Inconfidência Mineira será uma conspiração de padres, letrados e militares.
  Tal cenário não apresenta sintomas de alteração até o momento em que a conjugação entre o interesse da classe dominante e o interesse da metrópole não sofre perturbações. A crise açucareira traz a primeira perturbação; a espoliação mineradora agrava o problema. A ideia de libertação, de rompimento dos laços de dependência, surge primeiro na camada intermediária, porque é a mais profundamente interessada em alterar a estrutura vigente.  O Brasil está, no entanto, suficientemente fragmentado para que a metrópole trate cada um dos focos de per si, reduzindo-os brutalmente, e bastante submisso, porque a classe dominante receia lançar-se à empresa da luta contra a taxação. Qualquer movimento, nas condições da época, que não contasse com o apoio da classe de senhores territoriais e de escravos estava condenado ao malogro. Qualquer movimento que não superasse a fragmentação geográfica, por outro lado, estava sob a poderosa ameaça de um tratamento isolado.
  Ora, a Revolução Industrial, no quadro externo, vem proporcionar justamente as condições que faltavam aqui. O aumento vertical, produzido pela máquina, no volume e na variedade das mercadorias, impunha a abertura de novos mercados e a ampliação dos existentes. Quando Napoleão invade a península ibérica, derrocando as cortes metropolitanas, cria a circunstância favorável à reforma que se impõe nas áreas coloniais americanas. À Inglaterra, que comanda a transformação econômica, interessa rasgar a clausura, romper o regime de monopólio comercial, eliminar as metrópoles intermediárias, estabelecer a troca direta. Isto interessa também à classe dominante colonial, que, eliminando o monopólio que a metrópole mantém sobre a circulação, vai realizar os valores do que produz em seu próprio benefício. Deixa de associar-se à metrópole para associar-se à burguesia européia. À Inglaterra interessa, ainda, a transformação do regime de trabalho: a ampliação de mercados só é possível onde o trabalhador vive de salário. Daí a sua pressão contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo. Mas nesse ponto não encontra apoio na classe dominante colonial, interessada no comércio livre, mas não no trabalho livre. Os acontecimentos mostram o acordo que se estabelece entre as forças em presença: a abertura dos portos, a montagem de um aparelhamento administrativo próprio, a Independência, o reconhecimento da Independência e a prolongada luta inglesa contra o tráfico. Essa luta corresponde, no Brasil, a uma resistência da classe dominante, que se prolonga praticamente da Independência à República. Essa classe tinha condições para durar na resistência porque se valia do crescimento vegetativo da massa escrava. Os elementos diretamente ligados ao tráfico negreiro, investimento importantíssimo na época, não tinham, porém, a mesma capacidade de resistência, e há, desde então, uma progressiva transferência de capitais daquela atividade para outras, inclusive as que aparecem na segunda metade do século XIX, após a lei Eusébio de Queirós, atividades de transporte, atividades industriais, serviços públicos etc.
  O cenário em que se processou a Independência apresenta-nos alguns aspectos interessantes. Convém destacar aqueles que mostram a solução das contradições então existentes. Em primeiro lugar, é fácil perceber que o Brasil não tinha povo e, assim, a sua sorte seria decidida quando a classe dominante, de senhores de terras e de escravos, esposasse o ideal da emancipação. Em segundo lugar, é ainda fácil perceber que a emancipação seria limitada àquilo que interessasse à classe dominante, única a deter poderes suficientes para lutar. Por último, é ainda interessante acentuar que, apesar de tudo, quando a referida classe aceita a participação numa empresa como a da autonomia e pretende configura-la à sua imagem e semelhança, está lançando a semente de transformação futura, quando não será a única a decidir de uma transformação. Pode, na segunda década do século XIX, negar a abolição do trabalho escravo; na penúltima, estará interessada na abolição. Cada fase traz em germe, assim, a transformação posterior.
Continua na próxima edição.

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