Wednesday, September 29, 2010

Nacionalismo brasileiro e suas raízes históricas (2)

 

Continuação da edição anterior

A República decorre justamente da composição de forças entre uma classe média que disputava a participação no poder e de uma fração da classe dominante cindida, aquela que se emancipara do que o Império era a representação característica,
a lavoura nova do café. Quando a circunstância favorável surge, essa composição de forças não tem mais do que alijar o trono. A partir daí, no entanto, assiste-se a um movimento inverso: a luta da classe territorial para expulsar do poder os elementos de classe média, que eram os militares, recompondo-se, para isso, a unidade dos velhos tempos

NELSON WERNECK SODRÉ

Vejamos, agora, da mesma forma sumária e com as deficiências peculiares ao inevitável esquematismo, como se apresenta o quadro em que o Brasil abandona as instituições monárquicas e adota o regime republicano. O quadro físico é constante e não há que referir os seus aspectos. A população cresceu, entretanto, o cálculo, agora, apresenta quatorze milhões de brasileiros. Isto, por si só, seria importante. Mais importante, porém, é a composição demográfica: os escravos, no momento da abolição, mal somam setecentos mil, e há províncias que se livraram desse regime de trabalho sem grandes tropeços, antes mesmo da lei de 1888. Dos quatorze milhões, calcula-se em trezentos mil os que são proprietários, compreendido os parentes e aderentes. Há, então, maioria esmagadora de não proprietários, e já não há escravos. São todos trabalhadores livres, repartidos em classes: é possível mencionar a existência de uma classe média e naturalmente uma classe média peculiar a um povo de formação colonial. É possível falar em trabalhadores, embora seja ainda prematuro falar em operários. Há operários porque há indústrias – indústrias de bens de consumo, naturalmente, que explicam o crescimento do mercado interno e a transferência de capitais de determinadas áreas de aplicação para outras –, mas tais operários, recrutados nas sobras do campo, já nesse tempo, ou nas correntes imigratórias, carecem de significação política. Há muitas atividades novas, além das indústrias: cresceu desmedidamente o aparelho do Estado, aparecendo o malsinado, mas bem pouco analisado, empreguismo; desenvolveu-se muito a atividade mercantil, tanto no setor interno como no setor externo. Em determinadas faixas, particularmente as litorâneas, há um mercado consumidor apreciável. As oscilações da política econômica e financeira refletirão esse novo quadro. Nele há, evidentemente, contradições, que, em todo o decorrer da segunda metade do século XIX, não cessam de crescer. Começa a ruir muito depressa a velha estrutura colonial. Em grandes áreas, há sinais visíveis de uma existência que busca assemelhar-se à européia.
  Na última parte do século XIX, realmente, operaram-se, no Brasil, transformações de importância. Algumas são ostensivas, não escapam à observação de qualquer viajante: há, agora, um quadro urbano específico, em que a divisão do trabalho apresenta a sua variedade; há serviços públicos que oferecem um mínimo de conforto às populações citadinas, particularmente para a locomoção e a iluminação; há meios de transmissão do pensamento, como o telégrafo e, depois, o cabo submarino; há meios de transmissão de ideias, como a imprensa e o livro. As profissões ditas liberais – e assim chamadas porque peculiares aos homens livres – ampliam os seus horizontes. O comércio cresce e já movimenta importante volume de mercadorias. O aparelhamento administrativo está sempre a exigir novos quadros e nele começa a se destacar o setor financeiro. A embrionária rede bancária das primeiras décadas do século foi substituída por uma estrutura de crédito que mostra a sua importância logo depois da República, quando surge a questão da pluralidade nas emissões.
  Como estamos ainda na fase em que tem cabimento o lugar-comum de que somos um país “essencialmente agrícola”, é fácil verificar que todas essas transformações e todas essas inovações se originam no campo. O que aí se passou, realmente, altera bastante o panorama brasileiro. O açúcar, que detinha posição ainda importante, quando da Independência, estava agora praticamente alijado dos mercados externos, e os elementos ligados à sua produção dependiam de medidas protetoras do Governo. Surgira o fenômeno da borracha, trazendo muitas e desmedidas ilusões. Cacau, tabaco, madeira, couros, figuravam na exportação. Mas, nela, aparecia, com índice ascensional e força extraordinária, o café. Partindo do Município Neutro e ganhando as terras fluminenses para, depois, passar ao Vale do Paraíba, o café fizera a grandeza do Império, alicerçara o primado do centro-sul, fundamentara a tarefa unificadora e centralizadora empreendida pela monarquia e, principalmente, dera à balança do comércio externo os saldos que permitiram ao Brasil realizar as transformações ostensivas já mencionadas. É do café, realmente, que surgem os recursos para o aparelhamento material do País, a manutenção do aparelho político e administrativo, a construção dos portos e ferrovias. Dele originaram-se, ainda, e com função destacada, os capitais que, em circunstâncias favoráveis, foram investidos em atividades industriais. Quando o século se aproximava do fim, a lavoura do café não só se libertara do regime escravista como aceitara transformações outras que a estrutura ainda colonial da produção açucareira tornava impossíveis. Há, no Brasil, no fim do século, uma área agrícola estacionária. Nesta, aparece um mercado interno cuja capacidade de consumir vai em ascensão contínua; nesta, a capacidade aquisitiva apresenta aquela paralisia que hoje nos alarma. O monopólio prático dos mercados proporciona ao ritmo ascensional da expansão cafeeira uma espécie de euforia. Nos fins do século, e principalmente nos primeiros anos do século seguinte, começam a aparecer os primeiros sinais de que a euforia não tinha sólidas bases.
  O cenário da sociedade é também muito diverso daquele que a Independência apresentava. A classe dominante continua a ser a dos senhores de terras. Já não são senhores de escravos, porém – e a transformação fundamental está na passagem do regime escravista para um regime latifundiário e feudal, em que o pequeno produtor sem posses está vinculado ao senhor de terras por laços não institucionais. Há, por outro lado, uma cisão, que tende a se aprofundar, entre os que ancoraram nas lavouras velhas, seja de açúcar, seja de café, numa atividade predatória a que só por eufemismo se pode chamar de agricultura, e os que exploram a terra sob o regime de trabalho a salário, embora esse regime sofra os agravantes próprios de um meio em que o trabalho livre ainda sofria as mazelas do longo domínio do trabalho servil. De qualquer modo, os interesses do senhor do engenho não são, face a alguns problemas importantes, os mesmos do fazendeiro de café, os deste divergem dos que se especializaram na criação pastoril, e o seringalista se apresenta com uma face também diferente. A classe dominante diverge, em algumas faixas importantes, entre as quais passa a destacar-se a do câmbio e a do regime de trabalho.
  Aquela camada média que, desde a mineração, surgira em algumas áreas, e particularmente no centro-sul, crescera em número e encontrara acomodação social com a multiplicação das atividades. Embora estivesse comprometida em suas atividades pela origem de grande número de seus componentes, recebera também consideráveis reforços de outra origem e, entre estes, avultaria o dos militares de terra. O desenvolvimento das atividades comerciais lhe fornecera parcela ponderável. A decomposição familiar da classe dominante já apresentava o espetáculo dos detentores de nomes tradicionais que se resignavam em modestos cargos públicos. Quando da passagem do século, os cursos jurídicos que, na sua fundação, se destinavam a prover, com elementos classificados – numa época em que o diploma e o anel de grau classificavam –, os quadros do Estado, particularmente os políticos, começavam a mostrar razoável contribuição de elementos qualificados.
  Vinha, por último, a classe que fornecia o trabalho manual, a que a tradição servil duplamente onerara, com o estigma e o baixo nível de remuneração, repartida desigualmente entre o campo e a cidade, naquele reduzida a condições de vida próximas da servidão ou especificamente de servidão, e nesta limitada a determinados setores que a estreiteza do artesanato permitia e o número reduzido de estabelecimentos fabris e comerciais proporcionava. Que era povo, na fase a que nos referimos? Povo era tudo aquilo que não vivia do trabalho de outrem e compreendia, portanto, a maioria esmagadora da população.  Nesse total bruto, no entanto, é fácil verificar um líquido, reduzido numericamente, de elementos que estavam interessados na vida política, entendida em toda a sua amplitude. A estes, a estrutura do regime monárquico não conferia papel algum, e a própria escolha eleitoral, ainda depois da reforma da lei primitiva, discriminava profundamente. Nos últimos anos do Império, era ainda possível fazer um senador vitalício com duas centenas de votos.
  A monarquia estivera, desde a Independência, na posição de mandatária da classe dominante, dos senhores territoriais, que enobreceu com títulos. Representara, naquela fase de transição, a saída mais fácil, a ânsia em manter tudo o que era colonial, não sendo colônia. À medida que o Brasil se transforma, e se transforma relativamente depressa na segunda metade do século XIX, o regime se incompatibiliza com os seus suportes naturais.  Caminhava para a situação em que decaiu, de uma aposentadoria por inútil. Desde os fins da guerra com o Paraguai, novas ideias atraíram os elementos novos na sociedade. A força do que era velho, porém, ainda era muito grande, e o malogro da experiência pioneira de Mauá demonstra, com clareza exemplar, a falta de ressonância econômica para os empreendimentos de sentido progressista. Que era o velho, nos fins do século? Era o trabalho servil, o regime monárquico emperrado, a centralização, a política financeira ortodoxa, a falácia da solução dos contínuos empréstimos externos, a franquia total aos investimentos sob garantias as mais amplas, como aquela que permite a uma ferrovia a exploração monopolista, por noventa anos, do transporte entre o maior centro distribuidor e o maior centro exportador do país.
  Na época da Independência, qualquer transformação dependia do apoio da classe dominante de senhores de terras e de escravos. A composição social e os interesses em jogo agora eram outros – mas a classe dominante permanecia a mesma. Qualquer transformação dependia ainda de seu apoio, embora não mais de um apoio unilateral. A República decorre justamente da composição de forças entre uma classe média que disputava a participação no poder e de uma fração da classe dominante cindida, aquela que se emancipara do que o Império era a representação característica, a lavoura nova do café. Quando a circunstância favorável surge, essa composição de forças não tem mais do que alijar o trono. A partir daí, no entanto, assiste-se a um movimento inverso: a luta da classe territorial para expulsar do poder os elementos de classe média, que eram os militares, recompondo-se, para isso, a unidade dos velhos tempos.
  A referida luta é que provoca os incidentes do governo de Deodoro e, principalmente, os que pontilham o período em que Floriano detém as rédeas do poder. Um cronista apressado, de quem se repete informação inidônea, afirmou que a queda do Império fora assistida com indiferença pelo povo. A falsidade da informação fica demonstrada no largo movimento de opinião que permite a Floriano resistir às correntes que contra ele se montam, movimento apaixonado, vibrante, trazido para a rua e, mais de que isso, desembocando na arregimentação de forças, que é a defesa do Rio contra a esquadra rebelada. Floriano representa, tipicamente, a classe média, que começa então a disputar um papel político. E a própria difusão do positivismo nessa classe revela a solução fácil que permitia a defesa de posições progressistas sem rompimento com valores éticos tradicionais.
  A composição entre a classe média e a facção economicamente mais poderosa da classe territorial seria rompida com os episódios que se seguem à proclamação do novo regime. E terminaria, com os presidentes paulistas, isto é, os representantes da lavoura cafeeira, por conduzir a um total alijamento da classe média. Esse alijamento se completa quando Campos Sales chega ao poder.  Define-se, em seu governo, pela reforma dos empréstimos externos, com o serviço das dívidas previsto no funding, pela orientação financeira, que pretende paralisar o assustador desenvolvimento, para a época, de novas empresas – de que o episódio do encilhamento fora uma singular caricatura –, e, particularmente, pela chamada “política dos governadores”, que consistia em entregar os Estados às oligarquias, para que os explorassem como fazenda particular. Dentro dessa repartição de poderes – em que o governo central, para realizar a sua política financeira, buscava a paz por meio da transformação política do país em feudos federados – os pleitos eleitorais eram resolvidos sumariamente pelas combinações de cúpula, no revezamento entre representantes dos grandes Estados, e pela execução resumida nas atas falsas e nos “reconhecimentos” adrede preparados. Reinava a paz em Varsóvia. Tudo isto significava, na verdade, que a classe dos senhores territoriais, de proprietária natural e indisputada de coisa pública, que fora no Império, necessitava agora articular todo um complicado sistema de compressão para defender o seu predomínio. E a República, por isso mesmo, vai assistir a uma sucessão de tumultos, de motins, de perturbações, de que as mais características são as campanhas de Rui Barbosa, particularmente a segunda, as “salvações” empreendidas pelo Governo Hermes, a revolta da esquadra com João Cândido para, em pleno século XX, abolir a chibata e, finalmente, o movimento tenentista que reflete, com a força crescente da classe média, as inquietações represadas.
Continua na próxima edição.

Tuesday, September 28, 2010

Nacionalismo brasileiro e suas raízes históricas (1)


O texto que publicamos nesta e nas próximas edições é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos.
  “Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro” é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré.
Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré.
  O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.
  A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos “nacionalismo” e “nacional-desenvolvimentismo”. Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão:  “A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos” (grifo nosso).
  Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias - continua no mesmo terreno.
  Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida.
  Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram “nacionalismo de fins” (hoje se diria “nacionalismo de resultados”).
  Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro “O nacionalismo na atualidade brasileira” é muito fácil perceber hoje que o “nacionalismo de fins” era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à “eficácia técnica”. Em nome desta, os adeptos do “nacionalismo de fins” aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais.
  Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse “desenvolvimentismo sem nacionalismo”, como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do “nacionalismo de fins” - levado às suas últimas consequências, o “nacionalismo de fins” tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação.
  Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo - de Jaguaribe e outros.
  A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista.
  Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou.
  No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação.
  Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar.
CARLOS LOPES
NELSON WERNECK SODRÉ
Em obediência a uma praxe estabelecida no ISEB, cabe-me pronunciar a aula inaugural, iniciando o contato com os estagiários neste novo ano de atividades regulares. Decidiu a Congregação, e me parece que acertadamente, versasse esta palestra matéria pertinente ao curso que me cabe desenvolver e atendesse ao interesse generalizado que o Nacionalismo vem despertando entre nós. Qualquer que seja a posição face a esse fenômeno central da vida política brasileira, nos dias que correm, não há dúvida que representa um fato de importância indiscutível, configurando um quadro em que essa posição deixa de ser indiferente para ser militante. Só os fenômenos cuja grandeza se traduz por semelhante generalidade e profundidade podem tornar-se divisores de águas. O Nacionalismo, no Brasil, atingiu tal magnitude. Cumpre, pois, analisar as suas raízes, uma vez que, na vida das coletividades, nada acontece por acaso, tudo tem o seu momento próprio e decorre de condições concretas. A tarefa que me cabe, pois, resume-se em demonstrar, pela análise histórica, que o Nacionalismo não só tem raízes profundas entre nós, como ainda, o que é fundamental, só poderia ter ocorrido agora, e não antes, e não poderia deixar de apresentar-se, nesta fase, com a força que não lhe podem negar, mesmo os seus mais ferrenhos adversários. Entre estes cumpre, desde logo, situar, como esmagadora maioria, os equívocos – aos quais se aplica a frase já bastante conhecida que os define como os que “perderam o fio da história”.
  Em todos os momentos, na vida individual como na vida coletiva, há, realmente, uma contradição entre o que está morrendo e o que está nascendo, entre o que pertence ao passado e o que pertence ao futuro. Quando o que nasce adquiriu a força necessária para vencer a resistência do que morre, diz-se que “perderam o fio da história” aqueles que se apegam ao que morre. Os últimos desaparecem com o próprio passado. Vivem agarrados ao que se dissolve a cada dia, defendendo-se por vezes bravamente, e outras vezes valendo-se apenas de teorias confusas, formulações abstratas e doutrinações subjetivas, em que, não raro, existe o brilho aparente do virtuosismo e uma esmerada técnica no tratamento dos assuntos. Essa desumanização dos especialistas é, certamente, um dos espetáculos mais tristes da luta entre o que está morrendo e o que está nascendo, no Brasil de hoje, e não espanta nem surpreende que o insulamento em determinado campo específico se assemelhe tanto à defesa de baluartes largamente protegidos por obras artificiais, o fosso, a levadiça, a seteira, de que foi pródiga a crônica medieval.
  Humanizar o especialista é, assim, uma das tarefas a que a renovação dos estudos brasileiros se vem propondo, obrigando-o a olhar o que se passa em redor, a sentir a realidade, a compreender aquilo que não está nas suas fórmulas, a responder adequadamente ao concreto, fora de cujo campo tudo definha e se corrompe. O novo corresponde, por isso mesmo, a uma visão de conjunto, em que as partes se compõem na sua relatividade, e denuncia todas as ideias como historicamente condicionadas, isto é, peculiares a determinado tempo e a determinado meio, e jamais eternas e absolutas, receitas universais diante das quais todos se deveriam curvar sem análise.
  Quando determinada formulação, como encantatória, polariza as atenções, ganha o pensamento da generalidade e aprofunda os seus efeitos, nega-la é mais do que uma infantilidade, porque é um erro. Os que, ante o Nacionalismo, que agora empolga nosso País, se coloca na atitude irônica, cética ou negativista, denunciam o rompimento com a realidade, o desprezo pelo concreto, a aversão ao objetivo – “perderam o fio da história”.
  Seria difícil fazer a análise desse fenômeno político acompanhando a sua lenta e laboriosa gestação, quase sempre inconsciente. Na impossibilidade de apresentar, na sequência ininterrupta a que o cinema nos habituou, o desenvolvimento daquela gestação, até a sua passagem do domínio inconsciente para o domínio consciente, quando se incorpora à realidade e afeta todas as suas manifestações, preferimos a técnica dos cortes. No largo, agitado e aparentemente confuso evolver da vida brasileira, selecionamos três cortes apropriados, em três fases características de transformação institucional: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Pela simples comparação dos quadros, verificaremos o que era novo em cada momento, e o que era velho, e como, inevitavelmente, o velho cedeu lugar ao novo – e que o novo de determinada etapa passa a ser o velho da futura, e assim se desenvolve a história, e por isso mesmo é que é história.
  Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes, no Brasil, e esclarece que, no total, cerca de um milhão e duzentos mil são escravos. Para fins de raciocínio, admitamos que a população tenha sido esta, numa faixa de tempo que vai da segunda metade do século XVIII aos dois primeiros decênios do século XIX – a faixa em que se processa a autonomia. Ela não acontece por acaso: assim como a descoberta e o povoamento foram consequência da Revolução Comercial, a Independência está vinculada à Revolução Industrial. É a Revolução Industrial que exige a ruptura do regime de monopólio de comércio, que era a própria razão de ser da dependência, naquela fase, em relação à metrópole. Que é a colônia, na segunda metade do século XVIII? Tínhamos atingido, geograficamente, a desmedida expansão territorial que hoje é uma das bases de nossa força. Os limites estabelecidos pelo Tratado de Madrid são, mais ou menos, os limites do Brasil atual.  O povoamento, entretanto, é ganglionar e, nessa imensidade territorial, apenas algumas áreas têm vida econômica ativa. No extremo norte, há uma atividade meramente coletiva, propiciada pelo quadro das especiarias amazônicas e que será substituída pelo primado do algodão maranhense. No Nordeste, prevalece o regime escravista, com a produção açucareira atravessando uma crise que provém da concorrência, que a metrópole agrava com as taxas, e da valorização do escravo, acarretada pela mineração. No Centro, a atividade mineradora inicia o seu declínio, depois de ter aberto as perspectivas de um mercado interno que impulsiona inclusive a circulação terrestre, com os tropeiros, os registros e o sistema fiscal extorsivo imposto pela Coroa. No Extremo Sul, com o advento da charqueada, a carne apresenta-se agora como bem econômico; em vez de lutar apenas pelo gado, o gaúcho terá de lutar também pelas pastagens; os campos começam a sofrer a apropriação, surgem os aramados e o espaço livre fica reduzido aos “corredores”. Toda a produção colonial se destina aos mercados externos, salvo o charque. Nela avulta, pelo seu caráter específico, o ouro. É a mineração, realmente, que inaugura uma etapa diferente na vida brasileira do século XVIII.
  O sistema colonial fundamentara-se, desde o início, no binômio terra-escravo – mas é inegável que o escravo era mais importante do que a terra, era mesmo a mercadoria por excelência. O desenvolvimento açucareiro articulava-se numa divisão de atividades e de lucros: ao senhor territorial pertencia a produção, à metrópole pertencia a circulação. Enquanto essa divisão funcionou de modo a proporcionar vantagens a cada uma das partes, a classe dos senhores de terras e de escravos, que era a classe dominante, funcionou na colônia como mandatária da metrópole, era a sua procuradora natural, a sua representante, uma vez que os interesses eram comuns. Ora, tal divisão não ocorreu na área mineradora: a metrópole operou a fundo uma total invasão do domicílio do explorador direto, fazendo-se dona do que era produzido e da transformação do que era produzido em valor. Não existiu, assim, na área mineradora, a mesma comunhão de interesses entre a classe dominante e a Coroa. Os motins sucessivos assinalam essa contradição. Ao aproximar-se o fim de século, a Inconfidência Mineira revela o clima que ali se criara.
  Do ponto de vista social, a população se repartia em senhores de terras e de escravos, que compunham a classe dominante, e pessoas livres, que não viviam da exploração do trabalho de outrem, constituindo-se uma camada social instável, sem função na estrutura vigente e sem qualquer poder político. O aumento numérico dessa camada intermediária – uma vez que depois dela vinha o escravo, sem nenhum direito, objeto de troca e instrumento de trabalho – constitui o fenômeno importante da segunda metade do século XVIII. Tal camada constitui o mercado interno que aparece no centro-sul. Uma parte gera a incipiente vida urbana que então começa marcar o quadro colonial; outra parte vai operar a transição do regime escravista para o regime feudal e semifeudal, que o substitui em vastas áreas, particularmente no interior. O elemento livre, insuscetível de escravização, transforma-se em servo. A parte que vive nas vilas e cidades, e que forma o grosso dos quadros administrativos, representa a fração instável, que alimenta as conspirações e os motins. No quadro minerador, ela tem importância – como no sul pastoril – porque preenche determinadas funções, a militar, a religiosa, a judiciária: a Inconfidência Mineira será uma conspiração de padres, letrados e militares.
  Tal cenário não apresenta sintomas de alteração até o momento em que a conjugação entre o interesse da classe dominante e o interesse da metrópole não sofre perturbações. A crise açucareira traz a primeira perturbação; a espoliação mineradora agrava o problema. A ideia de libertação, de rompimento dos laços de dependência, surge primeiro na camada intermediária, porque é a mais profundamente interessada em alterar a estrutura vigente.  O Brasil está, no entanto, suficientemente fragmentado para que a metrópole trate cada um dos focos de per si, reduzindo-os brutalmente, e bastante submisso, porque a classe dominante receia lançar-se à empresa da luta contra a taxação. Qualquer movimento, nas condições da época, que não contasse com o apoio da classe de senhores territoriais e de escravos estava condenado ao malogro. Qualquer movimento que não superasse a fragmentação geográfica, por outro lado, estava sob a poderosa ameaça de um tratamento isolado.
  Ora, a Revolução Industrial, no quadro externo, vem proporcionar justamente as condições que faltavam aqui. O aumento vertical, produzido pela máquina, no volume e na variedade das mercadorias, impunha a abertura de novos mercados e a ampliação dos existentes. Quando Napoleão invade a península ibérica, derrocando as cortes metropolitanas, cria a circunstância favorável à reforma que se impõe nas áreas coloniais americanas. À Inglaterra, que comanda a transformação econômica, interessa rasgar a clausura, romper o regime de monopólio comercial, eliminar as metrópoles intermediárias, estabelecer a troca direta. Isto interessa também à classe dominante colonial, que, eliminando o monopólio que a metrópole mantém sobre a circulação, vai realizar os valores do que produz em seu próprio benefício. Deixa de associar-se à metrópole para associar-se à burguesia européia. À Inglaterra interessa, ainda, a transformação do regime de trabalho: a ampliação de mercados só é possível onde o trabalhador vive de salário. Daí a sua pressão contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo. Mas nesse ponto não encontra apoio na classe dominante colonial, interessada no comércio livre, mas não no trabalho livre. Os acontecimentos mostram o acordo que se estabelece entre as forças em presença: a abertura dos portos, a montagem de um aparelhamento administrativo próprio, a Independência, o reconhecimento da Independência e a prolongada luta inglesa contra o tráfico. Essa luta corresponde, no Brasil, a uma resistência da classe dominante, que se prolonga praticamente da Independência à República. Essa classe tinha condições para durar na resistência porque se valia do crescimento vegetativo da massa escrava. Os elementos diretamente ligados ao tráfico negreiro, investimento importantíssimo na época, não tinham, porém, a mesma capacidade de resistência, e há, desde então, uma progressiva transferência de capitais daquela atividade para outras, inclusive as que aparecem na segunda metade do século XIX, após a lei Eusébio de Queirós, atividades de transporte, atividades industriais, serviços públicos etc.
  O cenário em que se processou a Independência apresenta-nos alguns aspectos interessantes. Convém destacar aqueles que mostram a solução das contradições então existentes. Em primeiro lugar, é fácil perceber que o Brasil não tinha povo e, assim, a sua sorte seria decidida quando a classe dominante, de senhores de terras e de escravos, esposasse o ideal da emancipação. Em segundo lugar, é ainda fácil perceber que a emancipação seria limitada àquilo que interessasse à classe dominante, única a deter poderes suficientes para lutar. Por último, é ainda interessante acentuar que, apesar de tudo, quando a referida classe aceita a participação numa empresa como a da autonomia e pretende configura-la à sua imagem e semelhança, está lançando a semente de transformação futura, quando não será a única a decidir de uma transformação. Pode, na segunda década do século XIX, negar a abolição do trabalho escravo; na penúltima, estará interessada na abolição. Cada fase traz em germe, assim, a transformação posterior.
Continua na próxima edição.

Wednesday, September 22, 2010

Nota do ministro Franklin Martins em resposta à reportagem do jornal O Estado de S. Paulo



Nota do ministro Franklin Martins em resposta à reportagem do jornal O Estado de S. Paulo

Em nota divulgada nesta quarta-feira (22/9), o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, refuta reportagem publicada hoje pelo jornal “O Estado de S. Paulo” que “maliciosamente tenta passar a ideia de que houve irregularidades” em licitação promovida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e que o acusa de ser responsável por elas.
Leia abaixo a íntegra da nota do ministro Franklin Martins:
Sob o título “TV de Lula contrata empresa que emprega filho de Franklin”, o jornal “O Estado de S. Paulo” publica hoje reportagem onde maliciosamente tenta passar a idéia de que houve irregularidades na licitação 08/2009 promovida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) para a contratação de sistema de gerenciamento de arquivos audiovisuais – e de que eu seria responsável por elas.
Cabem alguns esclarecimentos:
1. Como presidente do Conselho de Administração da EBC, não participo do dia-a-dia da empresa, conduzido pela sua diretoria-executiva. No caso das licitações, tanto eu como os demais integrantes do conselho limitamo-nos a aprovar o plano de investimentos da EBC e zelar pelo seu cumprimento. É nossa missão institucional.
2. Não houve qualquer irregularidade na licitação em questão, que foi conduzida com transparência e obedeceu a todas as normas legais. O modelo de licitação adotado, o do pregão eletrônico, dentre todos os previstos na legislação, é o mais transparente e o menos permeável a qualquer tipo de interferência externa. Nele, vence a licitação a empresa que oferece o menor preço, através de um processo de lances sucessivos dos diferentes competidores, em leilão realizado e acompanhado em tempo real por todos os inscritos.
3. Nesse sistema de leilão, é normal que o preço estimado inicial, definido pelo contratante a partir de pesquisas de mercado, caia sensivelmente durante o processo. No caso da licitação em questão, o preço estimado, de R$ 16 milhões, foi fortemente reduzido, devido à acirrada disputa entre duas empresas, a Tecnet e a Media Portal, chegando ao final a R$ 6,2 milhões, com significativa economia para a EBC.
4. Não houve qualquer recurso dos concorrentes contra o resultado da licitação, seja à EBC, seja ao TCU, seja ainda ao Poder Judiciário. Como manda a lei, o processo foi documentado e encontra-se à disposição de qualquer pessoa.
5. Meu filho Cláudio, jornalista com larga experiência em tecnologia da informação, trabalha na Rede TV, cujo principal acionista é também proprietário da Tecnet, empresa vencedora do pregão eletrônico. Ele não é dono da empresa, mas funcionário – e não participou da licitação. A lei, que todos somos obrigados a cumprir, não estabelece qualquer tipo de vedação nesse caso. Se a EBC não se ativesse à lei, poderia ser questionada na Justiça.
6. A idéia de que empresas que têm em seus quadros parentes de autoridades não podem ter qualquer tipo de relação com o governo não só não tem amparo legal como não se sustenta à luz do bom senso. Como ministro-chefe da Secom, aprovo rotineiramente investimentos de publicidade do governo federal em jornais, rádios, televisões, portais etc. Se tal idéia prevalecesse, qualquer órgão de comunicação que contratasse meu filho teria de parar de receber anúncios do governo, o que seria uma discriminação descabida.
7. A questão está em saber se houve algum tipo de favorecimento à empresa vencedora do pregão eletrônico, a Tecnet. A reportagem do Estadão se esquiva de apresentar elementos nesse sentido. Mas, para dar a impressão de que há algo esquisito na história, diz que a licitação foi feita às pressas, por minha orientação. Não é verdade. O processo obedeceu a todos os prazos legais. O que o jornal não explica, embora tenha recebido os esclarecimentos cabíveis, tanto da minha parte quanto da EBC (ver anexos 1 e 2 – aqui e aqui), é que, no serviço público, recursos de investimento não executados no ano fiscal são devolvidos ao Tesouro Nacional. Ou seja, se o pregão não fosse realizado até o dia 31 de dezembro, a EBC perderia recursos e seus planos de construção seriam afetados.
Daí o meu empenho para que essa e outras licitações fossem realizadas ainda em 2009.

8. O leilão não fora realizado antes porque o Congresso não aprovara o projeto de lei suplementar que destinava créditos suplementares para diversos órgãos públicos, inclusive a EBC. Legalmente, só com a entrada em caixa dos recursos previstos, a licitação poderia ser realizada. Assim, aprovada a lei no dia 22 e sancionada no dia 29 de dezembro, o leilão foi efetuado no dia 30. Mas, isso só foi possível porque todos os prazos e procedimentos legais estavam em dia. Portanto, não houve “pressa” ou atropelo, mas sim zelo para que a empresa não fosse prejudicada com o adiamento de investimentos necessários à sua modernização.
9. Quanto à afirmação de que a EBC, na elaboração do edital, teria feito consultas a outra empresa do setor, a EBC certamente poderá dar os esclarecimentos necessários. Vale assinalar, porém, que, segundo a própria reportagem, a empresa foi derrotada no pregão eletrônico. Portanto, a insinuação de que houve favorecimento não se sustenta à luz do resultado.
10. Por último, quero assinalar que a matéria reproduz, em grandes linhas, as afirmações constantes de ação popular movida pelo Sr. Angelo Varela de Albuquerque Neto contra a EBC. Isso fica claro também nas perguntas enviadas pelo repórter mim e a EBC (anexos 1 e 2 – aquiaqui). Esse senhor, no início de 2009, na iminência de perder contratos de utilização de software com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, mantenedora da TVE, passou a ameaçar e a chantagear funcionários tanto da Acerp quanto da EBC. Em vista disso, no dia 27 de março de 2009, oficiei à Advocacia Geral da União para que tomasse as providências judiciais cabíveis contra o referido indivíduo (anexo 3). No mesmo dia, a presidente da EBC, Maria Tereza Cruvinel, encaminhou ao diretor da Polícia Federal representação pedindo a abertura de inquérito policial para investigar os fatos (anexo 4).
11. Infelizmente a reportagem do Estadão, sabe-se lá por que razão, preferiu omitir esse fato dos seus leitores.
Brasília, 22 de setembro de 2010
Franklin Martins
Ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República
Leia também as notas divulgadas pela Secretaria-Executiva da EBC sobre a licitação vencida pela TecNet (aqui) e da empresa Tecnet (aqui).



http://blog.planalto.gov.br/nota-do-ministro-franklin-martins-em-resposta-a-reportagem-do-jornal-o-estado-de-s-paulo/trackback/

Wednesday, September 08, 2010

Serra sobre o sigilo em outubro de 2009

Por Renato Machado

Nassif,

Mais inacreditável do que isso é o fato de que existe uma matéria feita pelo SBT BRASIL, tratando do assunto de quebra de sigilos por uma máfia que atua em São Paulo, na qual o próprio José Serra comenta o fato do vasamento de sua declaração e de sua mulher com total calma e naturalidade, sem dizer que foi o PT, ou que é por motivos eleitorais. A reportagem ainda comenta sobre a violação de várias outras autoridades e pessoas comuns incluindo aí a própria Veronica Serra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua mulher, Guido Mantega, etc..

aqui está o link do video no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=pIKDfaN5K5A&feature=related

Acho que está mais que na hora de desmascarar essa história toda! Você com sua influência estou seguro que consegue! Esse video é prova cabal de que José Serra está explorando uma mentira para ganhar terreno em uma eleição perdida para ele!

Abs,

Renato Machado


Lula avisa: para votar tem que levar o título e um documento com foto!

A Independência do Brasil segundo Euclides da Cunha

No 188º aniversário de nossa independência política, escolhemos um extrato da obra de Euclides da Cunha para apresentar aos nossos leitores.
  Em 1906, a comissão de redação da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro decidiu publicar “O Brasil no século XIX”, artigo que Euclides da Cunha publicara na imprensa em 1901, portanto, um ano antes do livro que lhe deu o merecido prestígio de que desfruta até hoje - “Os Sertões”.
  Sempre um homem muito exigente com seus textos, e especialmente irritado com os erros tipográficos que eram, na época, extremamente comuns (muito mais do que hoje), Euclides resolveu reescrever o artigo de 1901. De acordo com a nota da comissão, “prestou-se gentilmente o autor a refundi-lo e ampliá-lo na sua maior parte, aumentando assim o seu valor”.
  Desse esforço surgiu o ensaio “Da Independência à República”, que pode ser encontrado nos arquivos da Revista, tomo LXIX, parte II, págs. 7 a 71. Após a trágica morte do autor, em 1909, o ensaio foi incluído no volume “À Margem da História”, infelizmente, com muitos erros. O resultado é que esse texto, com a visão de Euclides da história política do país, foi ofuscado pelo primeiro ensaio desse volume, sobre a Amazônia, um esboço do livro que o autor pretendia escrever sobre a região, mas não teve tempo para fazê-lo.
  Para a publicação do extrato que hoje apresentamos, preferimos o texto que saiu originalmente na Revista. Mantivemos a pontuação de Euclides – uma das características de seu famoso estilo. Alteramos apenas a ortografia, pois o original foi escrito na antiga ortografia, dita “etimológica”, em boa hora abolida, com todos os seus “ph” e “ll”, após a Revolução de 1930. No entanto, mantivemos algumas incoerências secundárias (por exemplo, a abreviatura de “dom”, que aparece às vezes com “d” maiúsculo e às vezes com minúsculo), simplesmente porque não sabemos qual a intenção do autor.
  Este extrato corresponde às páginas 19 a 25 da Revista de 1906 – que abordam os acontecimentos que vão do retorno de D. João VI a Portugal até o coroamento do primeiro imperador do Brasil.
  Pode-se dizer que o tema de Euclides é sempre o da unidade e integração nacionais. Ele conseguiu, em sua época, enxergar o que estava oficialmente oculto desde o primeiro governo da oligarquia cafeeira, o de Prudente de Moraes: a necessidade de integrar vastas parcelas da população – em verdade, a sua maioria. Na versão oficial da época, essas parcelas não faziam parte do país – simplesmente, eram ignoradas, exceto quando, como em Canudos, era impossível. Mas a resposta da oligarquia, nesse caso, era tentar eliminá-las.
  É notório como “Os Sertões” são opostos aos artigos que Euclides anteriormente escreveu sobre Canudos. Nestes, o arraial de Antonio Conselheiro é “a nossa Vendeia”, isto é, o antro da contrarrevolução monarquista, tal como a Vendée o foi na Revolução Francesa.
  Em “Os Sertões”, no entanto, Canudos não é mais “a nossa Vendeia”, mas “a Troia de taipa”. O conhecimento da realidade fez o autor mudar diametralmente a sua opinião. Ficara impressionado não somente com a força, mas com a inteligência e a capacidade dos homens e mulheres de Canudos. Daí até a constatação de que era necessário incorporar esses homens e mulheres à construção do Brasil, e não negar a sua existência ou eliminá-los, o passo não foi muito grande.
  Evidentemente, tal posição exigia coragem, pois era incompatível com o oficialismo oligárquico – tal como também é incompatível com a indigência tucana atual, e pela mesma razão: em sua submissão a metrópoles externas, construir uma grande nação, independente e justa, não era e não é ideal nem de uns nem de outros. Aliás, para ambos, isso é impossível.
  Mas Euclides da Cunha era um ex-oficial do Exército, engenheiro, discípulo de Benjamin Constant. Portanto, ao mesmo tempo, um republicano radical e um positivista. No texto abaixo, como o leitor verá, ele classifica Auguste Comte como o “mais robusto pensador do século”, um julgamento a respeito do século XIX que hoje é insustentável.
  No entanto, para os republicanos brasileiros o positivismo era uma trincheira contra o catolicismo monárquico, depois que a maçonaria não conseguiu – até porque não se propunha a isso – cumprir esse papel. Tanto para Benjamin Constant, maior matemático brasileiro de seu tempo, quanto para Euclides, um futuro professor de Lógica do Colégio Pedro II, os termos nos quais Comte traduziu seu pensamento serviram como organizadores de um pensamento próprio. Não havia, no Brasil da época, opção melhor.
  Assim, ao estudar a Independência, o que Euclides destaca é o caráter revolucionário do processo histórico que fundou nosso país como entidade política. É verdade que ele parece ter em mente, como modelo de revolução, sempre a Revolução Francesa dos fins do século XVIII. Algumas comparações feitas por ele merecem, talvez, uma investigação cuidadosa – por exemplo, Euclides, considerado um “jacobino” antes e durante a proclamação da República, ao mencionar Gonçalves Ledo chama-o de “agitador que recorda um girondino desgarrado em nossa terra”. Se o grupo de Ledo corresponde aos girondinos, ala direita da Revolução Francesa, quem seriam os jacobinos, a ala esquerda de Robespierre e Saint Just? É claro na continuação do texto, quando se refere ao afastamento de Ledo após a Independência, que tal papel é atribuído a José Bonifácio, pelas medidas de seu governo logo após a coroação do Imperador. Trata-se de uma inversão da historiografia tradicional – mas o conflito com o imperador na Constituinte de 1823, com sua dissolução, à qual Ledo, ao contrário de Bonifácio, não se opôs, talvez seja um indício de que Euclides está mais próximo da verdade.
  Por último, é preciso observar que o estilo de “Da Independência à República”, quatro anos após “Os Sertões”, é o da maturidade de Euclides.
  Em 1902, quando publicou seu livro mais famoso – seu “único” livro, no dizer de Nelson Werneck Sodré, pois o restante de sua obra é constituída de artigos, ensaios e relatórios publicados originalmente em diversos órgãos – um crítico da época, Carlos de Laet, recorreu a uma figura de linguagem para descrever seu estilo: “estilo de cipó”.
  Durante décadas, isso foi repetido, sob diversas formas, sobretudo a usada por Joaquim Nabuco (“Euclides escrevia com um cipó”). Era um modo de afirmar – com razão – que a obra de Euclides não se enquadrava na literatura adocicada que existia na época. Era, em tudo, oposto aos autores de estilo diabético que pululavam na República Velha – hoje, quase todos, merecidamente esquecidos.
  Porém, Laet, Nabuco e outros mantiveram essa descrição no terreno formal, meramente estilístico, sem expor as raízes desse estilo – o conteúdo da obra de Euclides, aquele povo brasileiro marginalizado pelo regime de então, que só encontraria expressão política nas décadas de 20 e 30 do século XX. Daí o estilo que parecia rascante aos seus contemporâneos. O estilo adocicado de outros autores, portanto, era a manifestação de seu conformismo ao regime oligárquico – e houve apenas duas grandes exceções na literatura da época (pois não nos parece que a outra, Graça Aranha, esteja no mesmo patamar dessas duas): Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos. Não por acaso, certos trechos de um e de outro parecem-se tanto, apesar do primeiro ser um prosador e o segundo um poeta.
  Infelizmente, a imagem do “cipó” foi responsável por afastar, algo assustados, multidões de jovens da obra de Euclides. Muito mais interessante, entretanto, é examinar seu estilo do ponto de vista que aludimos: como uma expressão poética em prosa.
  Veja-se o trecho mais citado de Euclides:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.”
  Não é difícil perceber que há nesse trecho a estrutura de um poema, no ritmo tão caro a Augusto dos Anjos.
  O mesmo pode-se dizer, no texto que hoje publicamos, de frases como “esta última cláusula rompeu a represa da revolta”.
  É impossível ler Euclides – ou seja, obter prazer com a leitura – sem percebermos essa grandeza poética e épica de seu texto.

CARLOS LOPES

EUCLIDES DA CUNHA

Houve, então, na nossa história uma antinomia notável.
  O nativismo nacional que, à parte a breve irritação pernambucana, tolerara o absolutismo da realeza, começou de ser rudemente aferroado pelo liberalismo português.
  Contravindo ao espírito superior do pensamento político que as inspirara, as Côrtes de Lisboa planearam revogar as reformas feitas anteriormente e adotaram quanto ao Brasil o programa extravagante de recolonização: votaram a supressão das escolas e tribunais superiores; a dissolução do governo geral do Rio, completada com a tentativa de revocação do príncipe D. Pedro; e fracionando a administração inteira, com o impor a cada província a correspondência direta da metrópole remota, fantasiaram um Brasil anterior a Tomé de Souza.
  Não trancaram os portos porque o comércio geral era, em última análise, o comércio inglês.
  A minoria de representantes brasileiros em Lisboa - em que se destacavam um orador impetuoso e vibrante, Antonio Carlos, um pensador por igual poeta e matemático, Vilela Barbosa, um argumentador tenaz, Lino Coutinho, e aquele perfil escultural de Diogo Feijó, e o lúcido Araújo Lima, Vergueiro e outros - mal se opôs àquele recuo.
  Protestando, pela voz de Antonio Carlos, e abandonando um posto inútil, emigraram os deputados para a Inglaterra, ou demandaram a Pátria.
  Aqui, a discordância dos partidos, espelhando todos os cambiantes, do nativista exaltado ao reacionário, se engravecia com o antagonismo crescente dos dois elementos, nacional e português. E no baralhamento das paixões vivamente acirradas pelas notícias gravíssimas de ultramar, o primeiro, cindido de facções, sem comando porque havia chefes demais, certo não pulsearia o último, mais unido e centralizado pela divisão auxiliadora do general Jorge de Avilez, onde se estelava de resistência da metrópole.
  Dado o divórcio, que até aquele tempo isolara os vários agrupamentos em que se subdividia o país, punha-se de manifesto o seu desmembramento.
  As revoltas parciais, que iriam irromper repelindo a ameaça recolonizadora, sujeitar-se-iam a destinos vários nos diversos pontos do território, e na melhor hipótese presagiavam, a exemplo do que sucedera no Vice-Reinado do Prata, a formação de minúsculos estados, entregues às intrigas impunes do estrangeiro, ou à fantasmagoria de uma liberdade sangrando sob a espora dos caudilhos.
  Impediu-o o Príncipe Regente.
  Menos pelo valor pessoal que pelo prestígio da posição, fez-se árbitro entre os partidos, e o inclinar-se para os naturais propiciou-lhes o triunfo, criando à monarquia o seu mais elevado destino na nossa terra.
  D. Pedro de Bragança talhara-se, realmente, para aquela crise. Mediano em tudo – parte soldado, rei em parte, em parte condotieri – essa ausência de uma linha firme, no caráter, dava-lhe plasticidade para se amoldar ao incoerente da sociedade em que surgia. A situação histórica só lhe exigia a índole cavalheiresca, brilhante e arrebatada, a bravura impetuosa e, por fim, a própria inconstância que o levaria, tempos depois, após representar o seu papel revolucionário, a abandonar o país, ao despontar a fase reconstrutora de 1831.
  A exemplo do pai, ia agir sob a influência dos homens de valor que o circundavam.
Tínhamo-los, felizmente.
José Bonifácio chegara da Europa com renome feito de proeminente cultor da filosofia natural, e tornara-se a figura dominante de um grupo de patriotas apercebidos para as exigências complexas do momento.
  Mas como entrávamos em período forçadamente demolidor e crítico, coube ao jornalismo os primeiros passos da empresa.
  Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa, no Revérbero; fr. Francisco de Sampaio e Soares Lisboa, no Correio do Rio, esboçaram a reação nativista, deslocando para o âmago das agitações nacionais o que elas ainda não haviam tido, o vigor moral da opinião pública. E como nas províncias, desde Maranhão até S. Paulo, outros jornais se fundaram, reforçando-lhes os esforços, a imprensa fez-se instrumento preexcelente da luta iniciada, generalizando-a a todos os ângulos do país e favorecendo um movimento de conjunto que ainda não existira.
  Eivada de uma metafísica dissolvente, e desse lirismo político, que tanto comprometera a elaboração recente do século XVIII, o seu papel, embora exclusivamente crítico, traduziu-se como uma redistribuição de alentos e não dilatou a energia centrífuga além dessa propaganda tenaz.
  Porque se lhe contrapunha, no Rio, a força central da realeza.
  Não vacilemos em reconhecê-lo.
  Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política. Vimos, de um salto, da homogeneidade da colônia para o regime constitucional. Dos alvarás para as leis. E ao entrarmos de improviso na órbita dos nossos destinos, fizemo-lo com um único equilíbrio possível naquela quadra: o equilíbrio dinâmico entre as aspirações populares e as tradições dinásticas.  Somente estas, mais tarde, permitiriam que entre os “Exaltados”, utopistas avantajando-se demasiado para o futuro até entestarem com a República prematura, e os “Reacionários”, absolutistas em recuos excessivos para o passado, repontasse o influxo conservador dos “Moderados”, da Regência, o que equivalia à conciliação entre o Progresso e a Ordem, ainda não formulada em axioma pelo mais robusto pensador do século.
  Destarte, a luta da independência teve, no englobar elementos destruidores e reconstrutores, o caráter positivo de uma revolução.
  E desenrolou-se com uma finalidade irresistível.
  Mas o princípio foi esparso, dispartindo nos mesmos atos sem solidariedade, tão característicos da nossa história. As “Juntas Governativas”, que para logo se fundaram constituindo-se em pequenos estados, volviam ao aspecto exato dos tempos coloniais, numa espécie de decomposição espontânea. Algumas, como a de Pernambuco, mesmo reassumindo a atitude batalhadora, tendo suplantado o elemento português na “Capitulação do Beberibe”, (outubro de 1821), subtraíam-se ao influxo do governo do Rio, revivendo o antigo sonho da existência autônoma. Outras, as demais do norte, volvendo a obedecer aos antigos dominadores, facilitavam o programa da recolonização.
  Apenas quatro – Minas, S. Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – aceitaram desde logo o governo do príncipe.
  Nessa instabilidade, é claro que o pensamento libertador, adstrito à contingência de captar o beneplácito preliminar dos agrupamentos de novo dissociados, tinha um significado duplo: confundiam-se, penetrando-se entrelaçados, o ideal da independência e o da unidade nacional.
  E coube ao Sul levantá-lo, a começar pelo Rio de Janeiro, onde chegavam diretamente os decretos retrógrados da metrópole.
Ocorrera ademais, ali, uma transigência forçada, contraproducente no irritar os ânimos: as tropas de Avilez haviam, desde junho, imposto o juramento da Constituição das Côrtes portuguesas, combatida pelos deputados brasileiros, e a formação de uma Junta governativa destinada, como as outras, a agir em correspondência direta com o governo de Lisboa.
  Foi no regime transitório desta vitória efêmera, que entraram os decretos recolonizadores: declaravam-se independentes do Rio os governos das províncias e suprimidos todos os tribunais superiores.
  Impunha-se, por fim, a partida improrrogável de D. Pedro para a Europa.
  Esta última cláusula rompeu a represa da revolta.
Sublevou-se a multidão no Rio, (9 de janeiro de 1822), estimulada pela propaganda anterior de Gonçalves Ledo e Januário Barbosa, chefiada pelo presidente do senado da câmara, José Clemente Pereira, impondo ao príncipe, talvez vacilante, a permanência no Brasil.
  Impondo, é o termo. A representação de oito mil assinaturas, que lhe foi lida, não era um pedido; era uma intimativa.
Redigira-a um lutador, que não tem o renome merecido, fr. Francisco de Sampaio; e o sacerdote rebelde fora singularmente franco na primeira frase que traçara: “a partida de S. A. seria o decreto que teria de sancionar a independência do Brasil.”
  O príncipe cedeu; e este rompimento, não já da solidariedade política, senão da do sangue, completado, três dias depois, pela capitulação da divisão auxiliadora de Avilez, apoio material da ação longínqua de ultramar, foi o traço mais intenso, naquela quadra, da reação nativista.
  Ao mesmo tempo definiam-se as províncias. A Junta de S. Paulo, cujo presidente, Oyenhausen, se norteava pela vontade firme de José Bonifácio, ligara-se em manifesto enérgico aos sucessos anteriores – e no norte, a antiga fidelidade à metrópole partia-se (19 de fevereiro) precisamente na terra onde era clássica, a Bahia, levantada, em massa contra o general Madeira de Mello.
  Estava declarada a campanha libertadora.
  Dado o primeiro choque vitorioso contra o exército estrangeiro, antes mesmo que a sua repercussão nas províncias se coroasse de idêntico sucesso, o governo recém-organizado, dirigido por José Bonifácio, começou a deliberar, sobranceando os tumultos, como se o não rodeassem as maiores dificuldades.
  Caracterizaram-no três medidas radicais, de pronto decretadas: a chamada dos representantes das províncias para concertarem nas reformas urgentes; a preliminar do “cumpra-se” do príncipe d. Pedro imposta à efetividade das leis portuguesas; e por fim, medida mais séria, a convocação de uma Assembleia Constituinte (decreto de 3 de junho).
  Enquanto isto sucedia, o príncipe, numa viagem triunfal a Minas, em março, onde à sua chegada se apagaram nocivas discórdias emergentes, representava o seu papel real e único – o da ação de presença – como se nas transformações sociais se torne também preciso, às vezes, essa misteriosa força catalítica, que desencadeia as afinidades da matéria.
  O título que anteriormente lhe fora oferecido, numa data que se tornaria ainda mais célebre, (13 de maio), de “Defensor perpétuo do Brasil”, já valia por um pálido eufemismo, escondendo o de Imperador, em que desfechariam todos os acontecimentos.
  Ampliou-o a proclamação de 1 de agosto. Aí ele se declara defensor da independência das províncias, e pede “que o grito de união dos brasileiros ecoe do Amazonas ao Prata”.
  Redigida por Gonçalves Ledo, agitador que recorda um girondino desgarrado em nossa terra, ela foi por isto mesmo altamente expressiva. Expunha o único destino da monarquia entre nós, o de agente unificador; e como este seria nulo sem o alento das expansões populares, o pensamento do futuro imperante devia realmente vibrar na pena de um nervoso chefe liberal.
  É inexplicável, por isto, que aquela data tenha escapado à consagração do futuro. Falta-lhe talvez a exterioridade de outras, menos eloquentes e mais ruidosas: a de 7 de setembro, por exemplo.
  Com efeito, o interessante episódio da viagem que levara o príncipe a S. Paulo, com o mesmo intuito da ida anterior, a Minas, - em nada modificou o curso natural dos fatos. Apenas teve, diante da compreensão tarda e rudimentar do povo, a clareza sugestiva das imagens, e deu-lhe a minúcia singularmente valiosa de um símbolo, o tope nacional, auriverde, substituindo a velha divisa portuguesa quando esta foi violentamente despedaçada pelo régio intinerante ao receber, sobre a colina do Ipiranga, a notícia das decisões arbitrárias das Côrtes, que lhe anulavam todas as reformas praticadas...
  “Independência ou morte!”, bradou varonilmente, no meio da comitiva eletrizada. E a revolução teve afinal uma fórmula sintética, armada ao apercebimento imediato do povo, encantando-o pela nota romântica e teatral, e, como tantas outras por igual detonantes, desferindo o repentino surto da energia potencial das ideias.
  Prosseguiu dali por diante vertiginosamente.
  Aclamado e coroado (12 de outubro e 1 de dezembro de 1822) Imperador constitucional. d. Pedro I não lhe cerrara o ciclo inflexível. Dilatara-o.

http://www.horadopovo.com.br/

Thursday, September 02, 2010

Rigotto quer fechar um jornal ? A odisséia de um jornalista gaúcho

JORNAL JÁ
Como calar e intimidar a imprensa
Luiz Cláudio Cunha
“Quando o mal é mais audacioso, o bem precisa ser mais corajoso.” (Pierre Chesnelong, 1820-1894, político francês
Agosto, mês de cachorro louco, marcou o décimo ano da mais longa e infame ação na Justiça brasileira contra a liberdade de expressão.
É movida pela família do ex-governador Germano Rigotto, 60 anos, agora candidato ao Senado pelo PMDB do Rio Grande do Sul e supostamente alheio ao processo aberto em 2001 por sua mãe, dona Julieta, hoje com 89 anos. A família atacou em duas frentes, indignada com uma reportagem de quatro páginas, publicada em maio daquele ano em um pequeno mensário (tiragem de 5 mil exemplares) de Porto Alegre, o JÁ, que jogava luzes sobre a maior fraude da história gaúcha e repercutia o envolvimento de Lindomar Rigotto, filho de Julieta e irmão de Germano.
Uma ação, cível, cobrava indenização da editora por dano moral. A outra, por injúria, calúnia e difamação, punia o editor do JÁ e autor da reportagem, Elmar Bones da Costa, hoje com 66 anos. O jornalista foi absolvido em todas as instâncias, apesar dos recursos da família Rigotto, e o processo pelo Código Penal foi arquivado. Mas, em 2003, Bones acabou sendo condenado na área cível ao pagamento de uma indenização de R$ 17 mil. Em agosto de 2005 a Justiça determinou a penhora dos bens da empresa. O JÁ ofereceu o seu acervo de livros, cerca de 15 mil exemplares, mas o juiz não aceitou. Em agosto de 2009, sempre agosto, quando a pena ascendera a quase R$ 55 mil, a Justiça nomeou um perito para bloquear 20% da receita bruta de um jornal comunitário quase moribundo, sem anúncios e reduzido a uma redação virtual que um dia teve 22 jornalistas e hoje se resume a dois – Bones e Patrícia Marini, sua companheira. Cinco meses depois, o perito foi embora com os bolsos va zios, penalizado diante da flagrante indigência financeira da editora.
Até que, na semana passada, no maldito agosto de 2010, a família de Germano Rigotto saboreou mais um giro no inacreditável garrote judicial que asfixia o jornal e seu editor desde o início do Século 21: o juiz Roberto Carvalho Fraga, da 15ª Vara Cível de Porto Alegre, autorizou o bloqueio online das contas bancárias pessoais de Elmar Bones e seu sócio minoritário, o também jornalista Kenny Braga. Assim, depois do cerco judicial que está matando a editora, a família Rigotto assume o risco deliberado de submeter dois dos jornalistas mais conhecidos do Rio Grande ao vexame da inanição, privados dos recursos essenciais à subsistência de qualquer ser humano.
O personagem de Scorsese
Afinal, qual o odioso crime praticado pelo JÁ e por Elmar Bones que possa justificar tanta ira, tanta vindita, ao longo de tanto tempo, pelo bilioso clã Rigotto? O pecado do jornal e seu editor só pode ter sido o jornalismo de primeira qualidade, ousado e corajoso, que lhe conferiu em 2001 os prêmios Esso Regional e ARI (Associação Riograndense de Imprensa), os principais da categoria no sul do país, pela reportagem “Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”.
A primeira morte era a de uma garota de programa, Andréa Viviane Catarina, 24 anos, que despencou nua do 14º andar de um prédio na Rua Duque de Caxias, no centro da capital gaúcha, no fim da tarde de 29 de setembro de 1998. O dono do apartamento, Lindomar Rigotto, estava lá na hora da queda. Ele contou à polícia que a garota tinha bebido uísque e ingerido cocaína. Nenhum vestígio de álcool ou droga foi confirmado nos exames de sangue coletados pela criminalística. O laudo da necropsia diz que a vítima mostrava três lesões – duas nas costas, uma no rosto – que não tinham relação com a queda. Ela estava ferida antes de cair, o que indicava que houve luta no apartamento. Um teste do Instituto de Criminalística indicou que o corpo de Andréa recebeu um impulso no início da queda.
No relatório que fez após ouvir Rigotto, o delegado Cláudio Barbedo, um dos mais experientes da polícia gaúcha, achou relevante anotar: “[Lindomar] depôs sorrindo, senhor de si, falando como se estivesse proferindo uma conferência”. Os repórteres que o viram chegar para depor, no dia 12 de novembro, disseram que ele parecia “um personagem de Martin Scorsese”, famoso pelos filmes sobre a Máfia: Lindomar usava óculos escuros, terno azul marinho, calça com bainha italiana, camisa azul, gravata colorida e gel nos cabelos compridos. O figurino não impressionou o delegado, que incluiu na denúncia o depoimento de uma testemunha informando que Lindomar era conhecido como “usuário e traficante de cocaína” na noite que ele frequentava – por prazer e ofício – como dono do Ibiza Club, uma rede de quatro casas noturnas que agitavam as madrugadas no litoral do Rio Grande e Santa Catarina. Em dezembro, o delegado Barbedo concluiu o inquérito, denunciando Lindomar Rigotto por homicídio cu lposo e omissão de socorro.
Lindomar só não sentou no banco dos réus porque teve também uma morte violenta, 142 dias após a de Andréa. Na manhã de 17 de fevereiro, ele fechava o balanço da última noite do Carnaval de 1999, que levou sete mil foliões ao salão do Ibiza da praia de Atlântida, a casa mais badalada do litoral gaúcho. Cinco homens armados irromperam no local e roubaram a féria da noitada. Lindomar saiu em perseguição ao carro dos assaltantes. Emparelhou com eles na praia vizinha, Xangrilá, a três quilômetros do Ibiza. Um assaltante botou a arma para fora e disparou uma única vez. Lindomar morreu a caminho do hospital, com um tiro acima do olho direito. Tinha 47 anos.
O choque de Dilma
A trepidante carreira de Lindomar Rigotto sofrera um forte solavanco dez anos antes, com seu envolvimento na maior fraude da história gaúcha: a licitação manipulada de 11 subestações da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), uma tungada em valores corrigidos de aproximadamente R$ 840 milhões – 21 vezes maiores do que o escândalo do Detran que submeteu a governadora Yeda Crusius a um pedido de impeachment, quase três vezes mais do que os desvios atribuídos ao clã Maluf em São Paulo, quinze vezes maior do que o total contabilizado pelo Supremo Tribunal Federal para denunciar a “quadrilha dos 40″ do mensalão do governo Lula.
Afundada em dívidas, a estatal gaúcha de energia tinha dificuldades para captar os US$ 141 milhões necessários para as subestações que gerariam 500 mil quilowatts para 51 pequenas e médias cidades do Rio Grande. Preocupado com a situação pré-falimentar da empresa, o então governador Pedro Simon (PMDB) tinha exigido austeridade total.
Até que, em março de 1987, inventou-se o cargo de “assistente da diretoria financeira” para acomodar Lindomar, irmão do líder do Governo Simon na Assembléia, o deputado caxiense Germano Rigotto. “Era um pleito político da base do PMDB em Caxias do Sul”, confessaria depois o secretário de Minas e Energia, Alcides Saldanha. Mais explícito, um assessor de Saldanha reforçou a paternidade ao JÁ: “Houve resistência ao seu nome [Lindomar], mas o irmão [Germano] exigiu”.
Com a chegada de Lindomar, as negociações com os dois consórcios das obras, que se arrastavam há meses, foram agilizadas em apenas oito dias. Logo após a assinatura dos contratos, os pagamentos foram antecipados, contrariando as normas estritas baixadas por Simon para evitar curtos-circuitos contábeis na CEEE. Três meses depois, a empresa foi obrigada a um empréstimo de US$ 50 milhões do Banco do Brasil, captado pela agência de Nassau, no paraíso fiscal das Bahamas. Uma apuração da área técnica da CEEE detectou graves problemas: documentos adulterados, folhas numeradas a lápis, licitação sem laudo comprovando a necessidade da obra. A sindicância da estatal propôs a revisão dos contratos, mas nada foi feito. A recomendação chegou ao governo seguinte, o de Alceu Collares (PDT), e à sucessora de Saldanha na pasta das Minas e Energia, uma economista chamada Dilma Rousseff. “Eu nunca tinha visto nada igual”, diria ela, chocada com o que leu.
Dilma só não botou o dedo na tomada porque o PDT de Collares precisava dos votos do PMDB de Rigotto para ter maioria na Assembléia. Para evitar o risco de queimaduras, Dilma, às vésperas de deixar a secretaria, em dezembro de 1994, teve o cuidado de mandar aquela papelada de alta voltagem para a Contadoria e Auditoria Geral do Estado (CAGE), que começou a rastrear a CEEE com auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Ministério Público. Dependendo do câmbio, o tamanho da fraude constatada era sempre eletrizante: US$ 65 milhões, segundo o CAGE, ou R$ 78,9 milhões, de acordo com o Ministério Público.
A denúncia energizou a criação de uma CPI na Assembléia, proposta pelo deputado Vieira da Cunha, líder da bancada do PDT em 2008 na Câmara Federal. Vinte e cinco auditores quebraram sigilos bancários e fiscais. Lindomar Rigotto foi apontado em 13 depoimentos como figura central do esquema, acusação reforçada pelo chefe dele na CEEE, o diretor-financeiro Silvino Marcon. A CPI constatou que os vencedores da licitação, gerenciados por Rigotto, apresentavam propostas “em combinação e, talvez, até ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas”. O relatório final lembrava: “É forçoso concluir pela existência de conluio entre as empresas interessadas que, se organizando através de consórcios, acertaram a divisão das obras entre si, fraudando dessa forma a licitação”. O JÁ foi mais didático: “Apurados os vencedores, constatou-se que o consórcio Sulino venceu todas as subestações do grupo B2 e nenhuma do B1. Em compensação, o Conesul venceu todas as obras do B1 e nenhuma do B1. A di ferença entre as propostas dos dois consórcios é de apenas 1,4%”.
O aval de Dulce
A quebra do sigilo bancário de Lindomar revelou um crédito em sua conta de R$ 1,17 milhão, de fonte não esclarecida. O relatório final da CPI caiu na mão de um parlamentar do PT, o também caxiense Pepe Vargas, primo de Lindomar e Germano Vargas Rigotto. Apesar do parentesco, o primo Pepe, hoje deputado federal, foi inclemente na sua acusação final: “De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto”. Além dele, a CPI indiciou outras 12 pessoas e 11 empresas, botando no mesmo balaio nomes vistosos como Camargo Corrêa, Alstom, Brown Boveri, Coemsa, Sultepa e Lorenzetti. No final de 1996, a Assembléia remeteu as 260 caixas de papelão da CPI ao Ministério Público, de onde nasceu o processo n° 011960058232 da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública em Porto Alegre. Os autos somam 30 volumes e 80 anexos e mofam ainda na primeira instância do Judiciário, protegidos por um inacreditável “segredo de justiça”. Em fevereiro próximo, o Rio Grande do Sul poderá comemorar os 15 anos de completo sigilo sobre a maior fraude de sua história.
Esta incrível saga de resistência e agonia do JÁ e de Bones provocada pela família Rigotto foi contada, em primeira mão, neste Observatório, em 24 de novembro de 2009 (“O jornal que ousou contar a verdade”). No dia seguinte, uma quarta-feira, Rigotto telefonou de Porto Alegre para reclamar ao autor que assina aquele e este texto.
– Isso ficou muito ruim pra mim, Luiz Cláudio, pois o Observatório é um formador de opinião, muito lido e respeitado. Ficou parecendo que eu estou querendo fechar um jornal. Eu não tenho nada a ver com isso. O processo é coisa da minha mãe. Foi a minha irmã, Dulce, que me disse que a reportagem era muito pesada, irresponsável. Eu nem conheço este jornal, este jornalista…
– Rigotto, a dona Julieta não é candidata a nada. O candidato és tu. A reportagem do JÁ tem implicações políticas que batem em ti, não na tua mãe. E acho muito estranho que, passados oito anos, tu ainda não tiveste a curiosidade de ler a reportagem que tanta aflição provoca na dona Julieta. Se tu estás te baseando na avaliação da Dulce, devo te alertar que ela não entende xongas de jornalismo, Rigotto! Esta matéria do Bones é precisa, calcada em fatos, relatórios, documentos e conclusões da CPI e do Ministério Público que incriminam o teu irmão. Não tem opinião, só informação. O teu processo…
– Não é meu, não é meu… É da minha mãe…
– Isso é o que diz também o Sarney, Rigotto, quando perguntam a ele sobre a censura que cala O Estado de S.Paulo. “Isso é coisa do meu filho, o Fernando”…
– Eu fico muito ofendido com esta comparação! Eu não sou o Sarney, não sou!…
– Lamento, mas estás usando a mesma desculpa do Sarney, Rigotto.
– Luiz Cláudio, como resolver isso tudo com o Bones? A gente pode parcelar a dívida e aí…
– Rigotto, tu não estás entendendo nada. O Bones não quer parcelar, não quer pagar um único centavo. Isso seria uma confissão de culpa, e ele não fez nada errado. Pelo contrário. Produziu uma reportagem impecável, que ganhou os maiores prêmios. Eu assinaria essa matéria, com o maior orgulho. Sai dessa, Rigotto!
Coincidência ou não, um dia depois do telefonema, na quinta-feira, 26, Rigotto convocou uma inesperada coletiva de imprensa em Porto Alegre para anunciar sua retirada como possível candidato ao Palácio Piratini, deixando o espaço livre para o prefeito José Fogaça.
O modelo de Roosevelt
Naquela mesma quarta-feira, 25 de novembro, a emenda ficou pior que o soneto. O advogado dos Rigotto, Elói José Thomas Filho, botou no papel aquela mesma proposta indecente que ouvi do próprio Germano Rigotto, confirmando por escrito ao editor a idéia de parcelar a indenização devida de R$ 55 mil em 100 (cem) módicas prestações. Diante da altiva recusa de Bones, o advogado pareceu incorporar a doutrina do big stick de Theodore Ted Roosevelt (1901-1909), popularmente conhecida como “lei do tacape” e inspirada pela frase favorita do belicoso presidente estadunidense: “Fale com suavidade e tenha na mão um grande porrete”. O suave advogado Thomas Filho escreveu então para Bones: “… em nova demonstração de boa-fé, formalizamos nossa intenção em compor amigavelmente o litígio acima, bem como a possibilidade [sic] de nos abstermos de ajuizar novas demandas judiciais…”.
Certamente para tranquilizar o filho candidato, o advogado reafirmava na carta a Bones que a ação contra o jornal era movida “unicamente” por dona Julieta, que buscava na justiça o ressarcimento pelo “abalo moral” provocado pela reportagem do JÁ, que misturava “irresponsavelmente três fatos diversos que envolveram a figura do falecido”. Ou seja, dona Julieta Rigotto, que entende de jornalismo tanto quanto os filhos Dulce e Germano, não consegue perceber a obviedade linear de uma pauta irresistível para qualquer repórter inteligente: o objetivo relato jornalístico sobre um homem público – Lindomar – morto num assalto pouco antes de ser julgado pelo homicídio culposo de uma prostituta e pouco depois de ser denunciado no relatório de uma CPI, redigido pelo primo deputado, pela prática comprovada de “corrupção passiva e enriquecimento ilícito” na maior fraude já cometida contra os cofres públicos do Rio Grande do Sul. Mas, na lógica simplória da mãe dos Rigotto, uma coi sa não tem nada a ver com a outra…
Para garantir o tom “amigável” entre as partes, o advogado de dona Julieta propôs a Bones os termos de uma retratação pública, suave como um porrete, enfatizando três pontos:
1. “Dona Julieta nunca teve a intenção de fechar o jornal”;
2. “a ação não é promovida pela família Rigotto, mas apenas por dona Julieta”;
3. “retirar o jornal de circulação, para estancar a propagação do dano”.
Tudo isso, incluindo o ameno confisco de um jornal das bancas em pleno regime democrático, segundo o tortuoso raciocínio do advogado, serviria para “tutelar a honra e a imagem de seu falecido filho”. Neste longo, patético episódio, que intercala demonstrações de coragem e altivez com cenas de pura violência, fina hipocrisia ou corrupção explícita, ficou pelo caminho o contraste de atitudes que elevam ou rebaixam. Diante da primeira ação criminal de dona Julieta na Justiça, o promotor Ubaldo Alexandre Licks Flores ensinou, em novembro de 2002:
“[não houve] qualquer intenção de ofensa à honra do falecido Lindomar Rigotto. Por outro lado, é indiscutível que os três temas [a CEEE e as duas mortes] estavam e ainda estão impregnados de interesse público”.
O orgulho de Enedina
Apesar da lucidez do promotor, o caso tonitruante da CEEE não ecoa nos ouvidos surdos da imprensa gaúcha, conhecida no país pela acuidade de profissionais talentosos, criativos, corajosos. Nenhum grande jornal do sul – Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio, O Sul –, nenhum colunista de peso, nenhum editorialista, nenhum blog de prestígio perdeu tempo ou tinta com esse tema, que nem de longe parece um assunto velho, batido ou nostálgico. O que lhe dá notória atualidade não é o ancestral confronto entre a liberdade de expressão e a prepotência envergonhada dos eventuais poderosos de plantão, mas a reaparição de seus principais personagens no turbilhão da corrida eleitoral de 2010.
Germano Rigotto, o líder governista que emplacou o filho de dona Julieta na máquina estatal, é hoje o candidato do maior partido gaúcho ao Senado Federal. A ex-secretária Dilma Rousseff, que ficou estarrecida com o que leu sobre as fraudes de Lindomar Rigotto na CEEE, é apontada pelas pesquisas como a futura presidente do Brasil, numa vitória classificada pelo renomado jornal inglês Financial Times como “retumbante”. Tarso Genro, o ex-comandante supremo da Polícia Federal, que executou as maiores operações contra corruptos da máquina pública, lidera a corrida ao governo gaúcho e, certamente, tem os instrumentos para saber hoje o que Dilma sabe desde 1990. O primo Pepe Vargas, que mostrou isenção e coragem no relatório da CPI sobre a maior fraude da história do Rio Grande, é candidato à reeleição, assim como o deputado federal que inventou a CPI, Vieira da Cunha.
É a lógica perversa do interesse eleitoral que explica o desinteresse até dos principais adversários de Rigotto na disputa pelo Senado. O candidato do PMDB está emparedado entre a líder na pesquisa da Datafolha, a jornalista Ana Amélia Lemos (PP) – que subiu de 33% em julho para 44% na semana passada – e o candidato à reeleição pelo PT, senador Paulo Paim – que cresceu de 35% no início do mês para 38% agora. Rigotto caiu de 43% para 42% no espaço de três semanas. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, Ana Amélia bate Rigotto por 47% a 39%. Seus oponentes desprezam o potencial explosivo do “Caso CEEE” porque todos sonham em ganhar o segundo voto dos outros candidatos, o que justifica a calculada misericórdia e o piedoso silêncio que modera a estratégia de adversários historicamente tão diferentes e hostis como são, no Rio Grande do Sul, o PT, o PMDB e o PP.
O que é recato na política se transforma em omissão nas entidades que, ao longo do tempo, marcaram suas vidas na luta pela democracia e pela liberdade de expressão e no repúdio veemente à ditadura e à censura. Siglas notáveis como OAB, ABI, SIP, Fenaj e Abraji brilham pelo silêncio, pela omissão, pelo desinteresse ou pelo trato burocrático do caso JÁ vs. Rigotto, que resume uma questão crucial na vida de todas elas e de todos nós: a livre opinião e o combate à prepotência dos grandes sobre os pequenos, apanágio de toda democracia que se respeita.
A OAB e seus advogados, no Rio Grande ou no Brasil, que impulsionaram a queda de um presidente envolvido em denúncias de corrupção, não se sensibilizam pela sorte de um pequeno jornal e seu bravo editor, punidos por seu desassombrado jornalismo e mortalmente asfixiados pelo cerco econômico surpreendentemente avalizado pela Justiça, que deveria proteger os fracos contra os fortes – e não o contrário.
A inerte Associação Brasileira de Imprensa jamais se pronunciou sobre as agruras de Bones e seu jornal. Só em setembro de 2009, um mês após a denúncia sobre o bloqueio judicial das receitas do JÁ, é que a Fenaj e o Sindicato dos Jornalistas do RS trataram de fazer alguma coisa: uma nota gelada, descartável, manifestando solidariedade à vítima e lamentando a decisão “equivocada” da Justiça. A Associação Riograndense de Imprensa, que em 2001 conferiu à reportagem contestada do JÁ o seu maior prêmio jornalístico, só quebrou o seu constrangedor silêncio ao ser cobrada publicamente por este Observatório, em novembro passado. Todos os membros da brava Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo têm a obrigação de conhecer a biografia de Elmar Bones, que nos anos de chumbo pilotou o CooJornal, um mensário da extinta Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (1976-1983) que virou referência da imprensa nanica que resistia à ditadura.
Bones chegou a ser preso, em 1980, pela publicação de um relatório secreto em que o Exército fazia uma autocrítica sobre as bobagens cometidas na repressão à guerrilha do Araguaia. Algo mais perigoso, na época, do que falar na roubalheira operada pelo filho de dona Julieta na CEEE… No site da Abraji, a entidade emite sua opinião em quatro notas, nos últimos dois anos. Critica o sigilo eterno de documentos públicos, defende o seguro de vida para repórteres em zona de risco, repudia um tapa na cara que uma repórter de TV do Centro-Oeste levou de um vereador e, enfim, faz uma vigorosa, firme, veemente manifestação a favor da liberdade de expressão… no México. Ao pobre JÁ e seu editor, lá no sul do Brasil, nenhuma linha, nada.
A poderosa Sociedade Interamericana de Imprensa, que reúne os maiores veículos das três Américas, patrocina uma influente Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação, hoje sob a presidência de um jornal do Texas, o San Antonio Express News. Entre os 26 vice-presidentes regionais, existem dois brasileiros: Sidnei Basile, do Grupo Abril, e Maria Judith de Brito, da Folha de S.Paulo. Envolvidos com os graves problemas da Paulicéia, eles provavelmente não podem atentar para o drama vivido por um pequeno jornal de Porto Alegre. Mas, existem outros 17 membros na Comissão de Liberdade da SIP, e dois deles bem próximos do drama de Bones: os gaúchos Mário Gusmão e Gustavo Ick, do jornal NH, de Novo Hamburgo, cidade a 40 km da capital gaúcha. Nem essa proximidade livra as aflições do JÁ e seu editor do completo desdém da SIP.
Este monumental cone de silêncio e omissão, que atravessa fronteiras e biografias, continua desafiando a sensibilidade e a competência de jornais e jornalistas, que deveriam se perguntar o que existe por trás do amaldiçoado caso da CEEE, que afugenta em vez de atrair a imprensa. A maior fraude da história do Rio Grande, mais do que uma bomba, é uma pauta em aberto, origem talvez da irritação dos Rigotto contra o editor e o jornal que ousaram jogar luz nessa história mal contada. Os volumes empoeirados deste megaescândalo continuam intocados nas estantes da Justiça em Porto Alegre, protegido por um sigilo inexplicável que só pode ser útil a quem mente e a quem rouba, não a quem luta pela verdade e a quem é ético na política, como fazem os bons repórteres e como devem ser os bons políticos.
O bom jornalismo não é aquele que produz boas respostas, mas aquele que faz as boas perguntas – e as perguntas são ainda melhores quando incomodam, quando importunam, quando constrangem, quando afligem os consolados e quando consolam os aflitos.
A emoção é a última fronteira de quem perde os limites da razão. Elmar Bones tinha ganhado todas as instâncias do processo criminal, quando um juiz do Tribunal de Justiça, na falta de melhores argumentos, preferiu se assentar nos autos impalpáveis do sentimento para decidir em favor da mãe de Germano Rigotto:
“Não há como afastar a responsabilidade da ré pelas matérias veiculadas, que atingiram negativamente a memória do falecido, o que certamente causou tristeza, angústia e sofrimento à mãe do mesmo (…)”.
Dona Julieta Rigotto, viva e forte aos 89 anos, ainda sofre com a honra e a imagem maculadas de seu falecido filho, Lindomar.
Dona Enedina Bones da Costa tinha 79 anos quando morreu, em 2001, poupada assim da tristeza, angústia e sofrimento que sentiria ao ver o drama vivido agora por seu filho, Elmar. Mas ela teria, com certeza, um enorme, um insuperável orgulho pelo filho honrado e corajoso que trouxe ao mundo e ao jornalismo.