Continuação da edição anterior
A República decorre justamente da composição de forças entre uma classe média que disputava a participação no poder e de uma fração da classe dominante cindida, aquela que se emancipara do que o Império era a representação característica,
a lavoura nova do café. Quando a circunstância favorável surge, essa composição de forças não tem mais do que alijar o trono. A partir daí, no entanto, assiste-se a um movimento inverso: a luta da classe territorial para expulsar do poder os elementos de classe média, que eram os militares, recompondo-se, para isso, a unidade dos velhos tempos
NELSON WERNECK SODRÉ
Vejamos, agora, da mesma forma sumária e com as deficiências peculiares ao inevitável esquematismo, como se apresenta o quadro em que o Brasil abandona as instituições monárquicas e adota o regime republicano. O quadro físico é constante e não há que referir os seus aspectos. A população cresceu, entretanto, o cálculo, agora, apresenta quatorze milhões de brasileiros. Isto, por si só, seria importante. Mais importante, porém, é a composição demográfica: os escravos, no momento da abolição, mal somam setecentos mil, e há províncias que se livraram desse regime de trabalho sem grandes tropeços, antes mesmo da lei de 1888. Dos quatorze milhões, calcula-se em trezentos mil os que são proprietários, compreendido os parentes e aderentes. Há, então, maioria esmagadora de não proprietários, e já não há escravos. São todos trabalhadores livres, repartidos em classes: é possível mencionar a existência de uma classe média e naturalmente uma classe média peculiar a um povo de formação colonial. É possível falar em trabalhadores, embora seja ainda prematuro falar em operários. Há operários porque há indústrias – indústrias de bens de consumo, naturalmente, que explicam o crescimento do mercado interno e a transferência de capitais de determinadas áreas de aplicação para outras –, mas tais operários, recrutados nas sobras do campo, já nesse tempo, ou nas correntes imigratórias, carecem de significação política. Há muitas atividades novas, além das indústrias: cresceu desmedidamente o aparelho do Estado, aparecendo o malsinado, mas bem pouco analisado, empreguismo; desenvolveu-se muito a atividade mercantil, tanto no setor interno como no setor externo. Em determinadas faixas, particularmente as litorâneas, há um mercado consumidor apreciável. As oscilações da política econômica e financeira refletirão esse novo quadro. Nele há, evidentemente, contradições, que, em todo o decorrer da segunda metade do século XIX, não cessam de crescer. Começa a ruir muito depressa a velha estrutura colonial. Em grandes áreas, há sinais visíveis de uma existência que busca assemelhar-se à européia.
Na última parte do século XIX, realmente, operaram-se, no Brasil, transformações de importância. Algumas são ostensivas, não escapam à observação de qualquer viajante: há, agora, um quadro urbano específico, em que a divisão do trabalho apresenta a sua variedade; há serviços públicos que oferecem um mínimo de conforto às populações citadinas, particularmente para a locomoção e a iluminação; há meios de transmissão do pensamento, como o telégrafo e, depois, o cabo submarino; há meios de transmissão de ideias, como a imprensa e o livro. As profissões ditas liberais – e assim chamadas porque peculiares aos homens livres – ampliam os seus horizontes. O comércio cresce e já movimenta importante volume de mercadorias. O aparelhamento administrativo está sempre a exigir novos quadros e nele começa a se destacar o setor financeiro. A embrionária rede bancária das primeiras décadas do século foi substituída por uma estrutura de crédito que mostra a sua importância logo depois da República, quando surge a questão da pluralidade nas emissões.
Como estamos ainda na fase em que tem cabimento o lugar-comum de que somos um país “essencialmente agrícola”, é fácil verificar que todas essas transformações e todas essas inovações se originam no campo. O que aí se passou, realmente, altera bastante o panorama brasileiro. O açúcar, que detinha posição ainda importante, quando da Independência, estava agora praticamente alijado dos mercados externos, e os elementos ligados à sua produção dependiam de medidas protetoras do Governo. Surgira o fenômeno da borracha, trazendo muitas e desmedidas ilusões. Cacau, tabaco, madeira, couros, figuravam na exportação. Mas, nela, aparecia, com índice ascensional e força extraordinária, o café. Partindo do Município Neutro e ganhando as terras fluminenses para, depois, passar ao Vale do Paraíba, o café fizera a grandeza do Império, alicerçara o primado do centro-sul, fundamentara a tarefa unificadora e centralizadora empreendida pela monarquia e, principalmente, dera à balança do comércio externo os saldos que permitiram ao Brasil realizar as transformações ostensivas já mencionadas. É do café, realmente, que surgem os recursos para o aparelhamento material do País, a manutenção do aparelho político e administrativo, a construção dos portos e ferrovias. Dele originaram-se, ainda, e com função destacada, os capitais que, em circunstâncias favoráveis, foram investidos em atividades industriais. Quando o século se aproximava do fim, a lavoura do café não só se libertara do regime escravista como aceitara transformações outras que a estrutura ainda colonial da produção açucareira tornava impossíveis. Há, no Brasil, no fim do século, uma área agrícola estacionária. Nesta, aparece um mercado interno cuja capacidade de consumir vai em ascensão contínua; nesta, a capacidade aquisitiva apresenta aquela paralisia que hoje nos alarma. O monopólio prático dos mercados proporciona ao ritmo ascensional da expansão cafeeira uma espécie de euforia. Nos fins do século, e principalmente nos primeiros anos do século seguinte, começam a aparecer os primeiros sinais de que a euforia não tinha sólidas bases.
O cenário da sociedade é também muito diverso daquele que a Independência apresentava. A classe dominante continua a ser a dos senhores de terras. Já não são senhores de escravos, porém – e a transformação fundamental está na passagem do regime escravista para um regime latifundiário e feudal, em que o pequeno produtor sem posses está vinculado ao senhor de terras por laços não institucionais. Há, por outro lado, uma cisão, que tende a se aprofundar, entre os que ancoraram nas lavouras velhas, seja de açúcar, seja de café, numa atividade predatória a que só por eufemismo se pode chamar de agricultura, e os que exploram a terra sob o regime de trabalho a salário, embora esse regime sofra os agravantes próprios de um meio em que o trabalho livre ainda sofria as mazelas do longo domínio do trabalho servil. De qualquer modo, os interesses do senhor do engenho não são, face a alguns problemas importantes, os mesmos do fazendeiro de café, os deste divergem dos que se especializaram na criação pastoril, e o seringalista se apresenta com uma face também diferente. A classe dominante diverge, em algumas faixas importantes, entre as quais passa a destacar-se a do câmbio e a do regime de trabalho.
Aquela camada média que, desde a mineração, surgira em algumas áreas, e particularmente no centro-sul, crescera em número e encontrara acomodação social com a multiplicação das atividades. Embora estivesse comprometida em suas atividades pela origem de grande número de seus componentes, recebera também consideráveis reforços de outra origem e, entre estes, avultaria o dos militares de terra. O desenvolvimento das atividades comerciais lhe fornecera parcela ponderável. A decomposição familiar da classe dominante já apresentava o espetáculo dos detentores de nomes tradicionais que se resignavam em modestos cargos públicos. Quando da passagem do século, os cursos jurídicos que, na sua fundação, se destinavam a prover, com elementos classificados – numa época em que o diploma e o anel de grau classificavam –, os quadros do Estado, particularmente os políticos, começavam a mostrar razoável contribuição de elementos qualificados.
Vinha, por último, a classe que fornecia o trabalho manual, a que a tradição servil duplamente onerara, com o estigma e o baixo nível de remuneração, repartida desigualmente entre o campo e a cidade, naquele reduzida a condições de vida próximas da servidão ou especificamente de servidão, e nesta limitada a determinados setores que a estreiteza do artesanato permitia e o número reduzido de estabelecimentos fabris e comerciais proporcionava. Que era povo, na fase a que nos referimos? Povo era tudo aquilo que não vivia do trabalho de outrem e compreendia, portanto, a maioria esmagadora da população. Nesse total bruto, no entanto, é fácil verificar um líquido, reduzido numericamente, de elementos que estavam interessados na vida política, entendida em toda a sua amplitude. A estes, a estrutura do regime monárquico não conferia papel algum, e a própria escolha eleitoral, ainda depois da reforma da lei primitiva, discriminava profundamente. Nos últimos anos do Império, era ainda possível fazer um senador vitalício com duas centenas de votos.
A monarquia estivera, desde a Independência, na posição de mandatária da classe dominante, dos senhores territoriais, que enobreceu com títulos. Representara, naquela fase de transição, a saída mais fácil, a ânsia em manter tudo o que era colonial, não sendo colônia. À medida que o Brasil se transforma, e se transforma relativamente depressa na segunda metade do século XIX, o regime se incompatibiliza com os seus suportes naturais. Caminhava para a situação em que decaiu, de uma aposentadoria por inútil. Desde os fins da guerra com o Paraguai, novas ideias atraíram os elementos novos na sociedade. A força do que era velho, porém, ainda era muito grande, e o malogro da experiência pioneira de Mauá demonstra, com clareza exemplar, a falta de ressonância econômica para os empreendimentos de sentido progressista. Que era o velho, nos fins do século? Era o trabalho servil, o regime monárquico emperrado, a centralização, a política financeira ortodoxa, a falácia da solução dos contínuos empréstimos externos, a franquia total aos investimentos sob garantias as mais amplas, como aquela que permite a uma ferrovia a exploração monopolista, por noventa anos, do transporte entre o maior centro distribuidor e o maior centro exportador do país.
Na época da Independência, qualquer transformação dependia do apoio da classe dominante de senhores de terras e de escravos. A composição social e os interesses em jogo agora eram outros – mas a classe dominante permanecia a mesma. Qualquer transformação dependia ainda de seu apoio, embora não mais de um apoio unilateral. A República decorre justamente da composição de forças entre uma classe média que disputava a participação no poder e de uma fração da classe dominante cindida, aquela que se emancipara do que o Império era a representação característica, a lavoura nova do café. Quando a circunstância favorável surge, essa composição de forças não tem mais do que alijar o trono. A partir daí, no entanto, assiste-se a um movimento inverso: a luta da classe territorial para expulsar do poder os elementos de classe média, que eram os militares, recompondo-se, para isso, a unidade dos velhos tempos.
A referida luta é que provoca os incidentes do governo de Deodoro e, principalmente, os que pontilham o período em que Floriano detém as rédeas do poder. Um cronista apressado, de quem se repete informação inidônea, afirmou que a queda do Império fora assistida com indiferença pelo povo. A falsidade da informação fica demonstrada no largo movimento de opinião que permite a Floriano resistir às correntes que contra ele se montam, movimento apaixonado, vibrante, trazido para a rua e, mais de que isso, desembocando na arregimentação de forças, que é a defesa do Rio contra a esquadra rebelada. Floriano representa, tipicamente, a classe média, que começa então a disputar um papel político. E a própria difusão do positivismo nessa classe revela a solução fácil que permitia a defesa de posições progressistas sem rompimento com valores éticos tradicionais.
A composição entre a classe média e a facção economicamente mais poderosa da classe territorial seria rompida com os episódios que se seguem à proclamação do novo regime. E terminaria, com os presidentes paulistas, isto é, os representantes da lavoura cafeeira, por conduzir a um total alijamento da classe média. Esse alijamento se completa quando Campos Sales chega ao poder. Define-se, em seu governo, pela reforma dos empréstimos externos, com o serviço das dívidas previsto no funding, pela orientação financeira, que pretende paralisar o assustador desenvolvimento, para a época, de novas empresas – de que o episódio do encilhamento fora uma singular caricatura –, e, particularmente, pela chamada “política dos governadores”, que consistia em entregar os Estados às oligarquias, para que os explorassem como fazenda particular. Dentro dessa repartição de poderes – em que o governo central, para realizar a sua política financeira, buscava a paz por meio da transformação política do país em feudos federados – os pleitos eleitorais eram resolvidos sumariamente pelas combinações de cúpula, no revezamento entre representantes dos grandes Estados, e pela execução resumida nas atas falsas e nos “reconhecimentos” adrede preparados. Reinava a paz em Varsóvia. Tudo isto significava, na verdade, que a classe dos senhores territoriais, de proprietária natural e indisputada de coisa pública, que fora no Império, necessitava agora articular todo um complicado sistema de compressão para defender o seu predomínio. E a República, por isso mesmo, vai assistir a uma sucessão de tumultos, de motins, de perturbações, de que as mais características são as campanhas de Rui Barbosa, particularmente a segunda, as “salvações” empreendidas pelo Governo Hermes, a revolta da esquadra com João Cândido para, em pleno século XX, abolir a chibata e, finalmente, o movimento tenentista que reflete, com a força crescente da classe média, as inquietações represadas.
Continua na próxima edição.