Hoje, senhores leitores, começaremos por um teste. Pedimos que leiam o seguinte trecho: “Karl Marx foi um pensador profundo e complexo que tirou a filosofia das nuvens e a colocou no mundo real. (....) Reduzir Marx ao esquerdismo de botequim que se nota em alguns livros e apostilas é uma ofensa ao filósofo alemão e um desserviço à educação dos jovens brasileiros”. Quem acertar qual foi o comunista que escreveu isso, ganhará uma viagem turística ao Bronx, bucólico bairro de Nova Iorque onde a vida é um eterno dia de São Cosme e Damião - bala pra todo mundo, não precisa nem ir atrás.
Não conseguiu descobrir? Ainda bem, leitor. Você acabou de se livrar do Bronx e ainda ficamos sabendo que não é leitor da “Veja”. Como? Sim, minha senhora, o trecho é da “Veja”, esse bastião da pureza ideológica do marxismo, na qual ficamos sabendo que Marx foi um “rigoroso filósofo alemão”; que “criticar o capitalismo é saudável”; e que os “dogmas e simplificações” são características do “marxismo vulgar”.
CRÍTICA
Entre um e outro curso de formação marxista na CIA, o Bob Civita comoveu-se com o drama de uma “dona de casa” escandalizada com o que leu nas apostilas do colégio de sua filha. É verdade que levou 9 anos para isso, desde que a filha entrou nesse colégio. Por sinal, uma dona de casa que se intitula “marxista desiludida”, o que só significa que ela confundia suas ilusões com o marxismo. Pelo seu retrato, a “dona de casa” em questão corre o risco de temperar o feijão com Chanel Nº 5 ou preparar vinha-d’alho com Chateau Dufort-Vivens, safra 1885, vinho que custa uns 15 ou 20 mil reais a garrafa...
Indignado com a deturpação do marxismo, o Civita encomendou uma crítica ao perigoso revisionismo das apostilas feitas pelo grupo COC, de Ribeirão Preto, São Paulo. Há alguns meses, ele arranjou um historiador da Universidade do Texas para fazer considerações sobre o capitalismo da Grécia no ano V a.C. Agora, a autora da contribuição crítica ao revisionismo só pode ser uma discípula daquele imbecil. Também convocou o sr. Roberto Romano, com seu pedantismo asinino, para falar do “emburrecimento dos jovens”. Sem dúvida, ele só não é especialista no assunto porque é muito chato. Não há jovem que agüente...
Mas, se os trechos que “Veja” reproduz são representativos do material do COC, essas apostilas são muito boas. Portanto, pessoal do COC, parem com esse negócio de mudar as apostilas. Nada de puxar o saco da “Veja”, pois o que ela está querendo é que vocês mudem o que está certo, não o que está errado. É só ler algumas pérolas do marxismo ortodoxo de “Veja”:
1) “A escravidão no Brasil é justificada pela condição de inferioridade do negro, colocado como animal, pois era ‘desprovido de alma’ (...). Além da Igreja, que legitimou tal sandice, a quem mais interessava tamanha besteira?”. Comentário de “Veja”: a Igreja já era, então, contrária à escravidão. O papa Paulo III escreveu, em 1537: “Ninguém deve ser reduzido à escravidão”.
O comentário de “Veja” é de uma ignorância crassa nos fatos históricos mais elementares. A Igreja condenou oficialmente a escravização dos índios no século XVI. Mas somente em 1839 ela condenaria a escravidão dos negros, através de uma bula do papa Gregório XVI. Declarações de alguns papas (Pio II, Paulo III, Urbano VIII) contra a escravidão negra jamais mudaram, durante 4 séculos, a posição da Igreja, estabelecida nas bulas de Eugênio IV, Nicolau V, Calisto III, Sisto IV e Inocêncio VIII. Se no caso dos índios argumentava-se que eles só se converteriam ao catolicismo se não fossem escravos, no caso dos negros a argumentação é que a conversão somente seria possível se eles fossem escravos.
2) “A dissolução das comunidades neolíticas, como também da propriedade coletiva, deu lugar à propriedade privada e à formação das classes sociais, isto é, a propriedade privada deu origem às desigualdades sociais (...).” (Capítulo “A pré-história”, pág. 103 da apostila do COC). Comentário da “Veja”: o conceito de “classes sociais” não se aplica a uma sociedade organizada em clãs. As desigualdades subsistem desde que a humanidade vivia da caça, da pesca e da coleta.
O comentário de “Veja” é coisa de idiota, além do mais, pedante. A apostila não se refere a “uma sociedade organizada em clãs”, mas, exatamente, à dissolução dessa sociedade (“dissolução das comunidades neolíticas”), e à sociedade de classes que resultou dessa dissolução, após a substituição da propriedade coletiva pela propriedade privada dos meios de produção. É evidente que antes da existência de classes havia desigualdades. O homem e a mulher, por exemplo, já naquela época não tinham a mesma anatomia. Mas a apostila se refere a “desigualdades sociais”, ou seja, desigualdades de classe, que, naturalmente, só podiam existir depois do aparecimento das classes sociais. Que a empregada do Civita não entenda chongas de marxismo, vá lá. Mas seria bom que aprendesse a ler.
DESCONHECIDO
3) “O surgimento da propriedade privada dos meios de produção (...) provocou, na Grécia, a formação da sociedade de classes organizada sob a cidade-estado.” (Capítulo “O período arcaico”, pág. 128 da apostila do COC) Comentário de “Veja”: as classes na Grécia antiga eram determinadas pela ascendência dos cidadãos – e não por sua riqueza.
O filho do Rockefeller é tão burguês quanto o pai. O filho do Victor Civita, o Bob, é da mesma classe que o pai. Mas seria de um ridículo atroz dizer que no capitalismo as classes sociais são determinadas “pela ascendência”. É evidente que as classes são formadas por indivíduos e que estes indivíduos se reproduzem. As classes na Grécia eram determinadas pela propriedade (ou não) dos escravos, da terra e dos demais meios de produção. Puxar o saco do patrão, que herdou aquela fortuna toda “pela ascendência”, não faz parte do marxismo. E as classes também não são determinadas “por sua riqueza”, ainda que os proprietários dos meios de produção sejam mais ricos do que os não proprietários. É a classe a que se pertence que determina a riqueza (ou pobreza), e não a riqueza (ou pobreza) que determina a classe. Só um asno (ou uma asna) para trocar as bolas nessa questão. Além do que, é possível ser rico e ser um desclassificado: se as classes sociais fossem determinadas “por sua riqueza”, Al Capone seria um representante da burguesia norte-americana. No entanto, era apenas um marginal.
O que mais escandalizou a “dona de casa” e a “Veja” não foi um texto histórico nem marxista, mas um texto literário, “Como se conjuga um empresário”. O autor é Mino, descrito por “Veja” como um “desconhecido escritor cearense”. Pode ser desconhecido para as bestas que compõem a corte do Civita, que adoram colocar nas alturas qualquer mediocridade, contanto que seja americana. Mino foi colaborador do “Pasquim” e até fez umas vinhetas para a Globo. Trata-se de um talentoso pintor, chargista, cartunista, humorista e escritor da terra de José de Alencar e Clóvis Monteiro - avô do nosso editor-chefe. Não é a primeira vez que Mino é vítima da burrice. Deve ser o único escritor que perdeu o sobrenome devido à censura daquela ditadura da qual o pai do Bob era expoente. Os censores acharam que Mino Castelo Branco só podia ser gozação com o Castelo Branco que havia assumido o poder com o golpe de 64. Não houve jeito de convencê-los de que esse era mesmo o seu sobrenome. Nem com a carteira de identidade na mão...
CARLOS LOPES
Não conseguiu descobrir? Ainda bem, leitor. Você acabou de se livrar do Bronx e ainda ficamos sabendo que não é leitor da “Veja”. Como? Sim, minha senhora, o trecho é da “Veja”, esse bastião da pureza ideológica do marxismo, na qual ficamos sabendo que Marx foi um “rigoroso filósofo alemão”; que “criticar o capitalismo é saudável”; e que os “dogmas e simplificações” são características do “marxismo vulgar”.
CRÍTICA
Entre um e outro curso de formação marxista na CIA, o Bob Civita comoveu-se com o drama de uma “dona de casa” escandalizada com o que leu nas apostilas do colégio de sua filha. É verdade que levou 9 anos para isso, desde que a filha entrou nesse colégio. Por sinal, uma dona de casa que se intitula “marxista desiludida”, o que só significa que ela confundia suas ilusões com o marxismo. Pelo seu retrato, a “dona de casa” em questão corre o risco de temperar o feijão com Chanel Nº 5 ou preparar vinha-d’alho com Chateau Dufort-Vivens, safra 1885, vinho que custa uns 15 ou 20 mil reais a garrafa...
Indignado com a deturpação do marxismo, o Civita encomendou uma crítica ao perigoso revisionismo das apostilas feitas pelo grupo COC, de Ribeirão Preto, São Paulo. Há alguns meses, ele arranjou um historiador da Universidade do Texas para fazer considerações sobre o capitalismo da Grécia no ano V a.C. Agora, a autora da contribuição crítica ao revisionismo só pode ser uma discípula daquele imbecil. Também convocou o sr. Roberto Romano, com seu pedantismo asinino, para falar do “emburrecimento dos jovens”. Sem dúvida, ele só não é especialista no assunto porque é muito chato. Não há jovem que agüente...
Mas, se os trechos que “Veja” reproduz são representativos do material do COC, essas apostilas são muito boas. Portanto, pessoal do COC, parem com esse negócio de mudar as apostilas. Nada de puxar o saco da “Veja”, pois o que ela está querendo é que vocês mudem o que está certo, não o que está errado. É só ler algumas pérolas do marxismo ortodoxo de “Veja”:
1) “A escravidão no Brasil é justificada pela condição de inferioridade do negro, colocado como animal, pois era ‘desprovido de alma’ (...). Além da Igreja, que legitimou tal sandice, a quem mais interessava tamanha besteira?”. Comentário de “Veja”: a Igreja já era, então, contrária à escravidão. O papa Paulo III escreveu, em 1537: “Ninguém deve ser reduzido à escravidão”.
O comentário de “Veja” é de uma ignorância crassa nos fatos históricos mais elementares. A Igreja condenou oficialmente a escravização dos índios no século XVI. Mas somente em 1839 ela condenaria a escravidão dos negros, através de uma bula do papa Gregório XVI. Declarações de alguns papas (Pio II, Paulo III, Urbano VIII) contra a escravidão negra jamais mudaram, durante 4 séculos, a posição da Igreja, estabelecida nas bulas de Eugênio IV, Nicolau V, Calisto III, Sisto IV e Inocêncio VIII. Se no caso dos índios argumentava-se que eles só se converteriam ao catolicismo se não fossem escravos, no caso dos negros a argumentação é que a conversão somente seria possível se eles fossem escravos.
2) “A dissolução das comunidades neolíticas, como também da propriedade coletiva, deu lugar à propriedade privada e à formação das classes sociais, isto é, a propriedade privada deu origem às desigualdades sociais (...).” (Capítulo “A pré-história”, pág. 103 da apostila do COC). Comentário da “Veja”: o conceito de “classes sociais” não se aplica a uma sociedade organizada em clãs. As desigualdades subsistem desde que a humanidade vivia da caça, da pesca e da coleta.
O comentário de “Veja” é coisa de idiota, além do mais, pedante. A apostila não se refere a “uma sociedade organizada em clãs”, mas, exatamente, à dissolução dessa sociedade (“dissolução das comunidades neolíticas”), e à sociedade de classes que resultou dessa dissolução, após a substituição da propriedade coletiva pela propriedade privada dos meios de produção. É evidente que antes da existência de classes havia desigualdades. O homem e a mulher, por exemplo, já naquela época não tinham a mesma anatomia. Mas a apostila se refere a “desigualdades sociais”, ou seja, desigualdades de classe, que, naturalmente, só podiam existir depois do aparecimento das classes sociais. Que a empregada do Civita não entenda chongas de marxismo, vá lá. Mas seria bom que aprendesse a ler.
DESCONHECIDO
3) “O surgimento da propriedade privada dos meios de produção (...) provocou, na Grécia, a formação da sociedade de classes organizada sob a cidade-estado.” (Capítulo “O período arcaico”, pág. 128 da apostila do COC) Comentário de “Veja”: as classes na Grécia antiga eram determinadas pela ascendência dos cidadãos – e não por sua riqueza.
O filho do Rockefeller é tão burguês quanto o pai. O filho do Victor Civita, o Bob, é da mesma classe que o pai. Mas seria de um ridículo atroz dizer que no capitalismo as classes sociais são determinadas “pela ascendência”. É evidente que as classes são formadas por indivíduos e que estes indivíduos se reproduzem. As classes na Grécia eram determinadas pela propriedade (ou não) dos escravos, da terra e dos demais meios de produção. Puxar o saco do patrão, que herdou aquela fortuna toda “pela ascendência”, não faz parte do marxismo. E as classes também não são determinadas “por sua riqueza”, ainda que os proprietários dos meios de produção sejam mais ricos do que os não proprietários. É a classe a que se pertence que determina a riqueza (ou pobreza), e não a riqueza (ou pobreza) que determina a classe. Só um asno (ou uma asna) para trocar as bolas nessa questão. Além do que, é possível ser rico e ser um desclassificado: se as classes sociais fossem determinadas “por sua riqueza”, Al Capone seria um representante da burguesia norte-americana. No entanto, era apenas um marginal.
O que mais escandalizou a “dona de casa” e a “Veja” não foi um texto histórico nem marxista, mas um texto literário, “Como se conjuga um empresário”. O autor é Mino, descrito por “Veja” como um “desconhecido escritor cearense”. Pode ser desconhecido para as bestas que compõem a corte do Civita, que adoram colocar nas alturas qualquer mediocridade, contanto que seja americana. Mino foi colaborador do “Pasquim” e até fez umas vinhetas para a Globo. Trata-se de um talentoso pintor, chargista, cartunista, humorista e escritor da terra de José de Alencar e Clóvis Monteiro - avô do nosso editor-chefe. Não é a primeira vez que Mino é vítima da burrice. Deve ser o único escritor que perdeu o sobrenome devido à censura daquela ditadura da qual o pai do Bob era expoente. Os censores acharam que Mino Castelo Branco só podia ser gozação com o Castelo Branco que havia assumido o poder com o golpe de 64. Não houve jeito de convencê-los de que esse era mesmo o seu sobrenome. Nem com a carteira de identidade na mão...
CARLOS LOPES
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