Em nossa edição de 1º de junho, publicamos o artigo de Paul Labarique, da Rede Voltaire, sobre a ação atual da Fundação Ford. O que hoje reproduzimos, embora não tenha sido assinado pelo autor - apareceu como material editorial da Rede - é uma síntese da primeira parte do trabalho de Labarique. Seu tema é a história inicial da Fundação Ford, suas origens, a bem dizer, suas raízes. No momento em que, como frisou Mário Jakobskind, alguns argumentam, no âmbito da comissão que organiza a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que a Fundação Ford é um órgão perfeitamente inocente, neutro, e até mesmo progressista, mere- cem ser rememorados aqueles tempos em que “intelectuais de esquerda” - tipo Fernando Henrique Cardoso - eram apoiados por tão generosa instituição. Nesse sentido, parece que nada mudou na Fundação Ford. E nem nos incautos, que sempre existem.
C.L.
A Fundação Ford foi criada em 1936 por Henry Ford. Antissemita militante, publicou “A Judiaria Internacional”. Figura legendária da indústria automobilística, apoiou todos os projetos totalitários do século XX: financiou o nacional-socialismo alemão antes de 1933, foi condecorado pelo chanceler Hitler com a Grande Cruz da Águia Alemã em 1938 e proveu uma boa parte do capital da empresa química IG Farben, fabricante do gás Zyklon B.
Todavia, foi depois de sua morte que sua fundação adquire o máximo esplendor, quando recebe 70 milhões de dólares das empresas Ford e converte-se na maior associação filantrópica do mundo. Como afirma Henry Ford II, novo presidente do conselho de administração, os anos 1949-1950 “marcam uma virada na história da Fundação Ford”.
"NOVOS TEMPOS"
O mesmo se produz quando os Estados Unidos adquirem o status de potência mundial de primeiro plano. Em Washington, o ex-embaixador na União Soviética, George F. Kennan, leva adiante uma campanha para persuadir os seus compatriotas de que o perigo vermelho é muito maior que a ameaça nazista e leva ao presidente Truman a não desarmar-se, mas a ocultar a máquina de guerra norte-americana e a preparar-se para um novo enfrentamento. Convence o secretário adjunto da Guerra, John J. McCloy, a não desmantelar os serviços secretos em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial, mas a adaptá-los aos novos tempos. É o teórico do “stay-behind”, uma rede composta inicialmente por agentes nazistas e fascistas que permaneceram atrás da linha de frente organizando a capitulação do Reich e que logo foram aproveitados pelos anglo-norte-americanos para continuar a luta contra a influência comunista na Europa. Dessa forma, um grupo de industriais reunidos ao redor do jurista H. Rowan Gaither Jr consegue impedir o desmantelamento do serviço de investigação, privatizando-o e batizando-o como Rand Corporation (Rand é o acrônimo de Research And Development).
Levando a termo toda essa lógica, Kennan cria uma estrutura permanente e secreta do aparato de Estado através do National Security Act, validado pelo Congresso em 1947. Institui a CIA, o Conselho de Segurança Nacional e o Estado Maior Conjunto. Este dispositivo tem, além disso, um plano de intervenção pública, promovido pelo general George C. Marshall, em forma de empréstimo para a reconstrução outorgado aos Estados europeus sobre a égide de Washington e cuja implementação é confiada a Paul G. Hoffman.
As fundações norte-americanas, a frente das quais se encontra a Fundação Ford, serão “soldados” de Washington nesta “Guerra Fria”. A nova dimensão financeira adquirida pela Fundação Ford em1947 desenvolve suas ambições. Para redefinir seus objetivos, o conselho de administração decide, no outono de 1948, encomendar “um estudo detalhado (...) a pessoas competentes e independentes que sirva de guia sobre a melhor forma (...) em que os fundos ampliados da Fundação podem ser utilizados em áreas de interesse geral”.
A comissão criada para isso é presidida por H. Rowan Gaither Jr, que acabara de criar a Rand Corporation graças às garantias bancárias da Fundação Ford. Gaither havia sido administrador do MIT durante a guerra e havia trabalhado com os físicos do Projeto Manhattan. Aconselhado por esta comissão, o conselho de administração promove o diretor do Plano Marshall, Paul G. Hoffman, para o posto de presidente da Fundação, função que assume em 1º de janeiro de 1951. Segundo o jornalista Volker R. Berghahm, este encarna “o papel mais amplo e internacional concebido pelo informe de Gaither para a Fundação”. A pauta havia sido traçada: paralelamente à rede stay-behind no campo político e ao Plano Marshall no econômico, a Fundação Ford será o braço cultural das redes de ingerência norte-americana na Europa.
Entre a elite dirigente dos Estados Unidos a favor da guerra da Coreia, a criação da Guerra Fria foi se consolidando na senda da extrema direita por um teórico temível, Paul H. Nitze. Ao mesmo tempo, a vida política interna submerge na “caça às bruxas”, da qual o senador Joseph McCarthy se converte em líder.
ARENA INTERNACIONAL
A maioria das fundações que prosperam ao final da guerra gastam a maior parte de seu orçamento em programas nacionais: assim, a Fundação Ford gasta, de 1951 a 1960, 32,6 milhões de dólares em programas educativos, 75 milhões para o ensino de economia e gestão, e cerca de 300 milhões para os hospitais e escolas de formação em medicina. No entanto, uma parte de seus quadros deseja dirigir a atividade para a arena internacional.
Uma primeira tentativa se refere ao Free Russia Fund, cuja presidência é confiada, naturalmente, ao criador da Guerra Fria, George F. Kennan, que encontra nela uma via para continuar sua carreira. Seu orçamento é de 200.000 dólares. Em julho de 1951 a Fundação oferece igualmente 1,4 milhões de dólares à Free University, em Berlim Ocidental.
No informe anual de 1951, Henry Ford menciona a “criação de condições para a paz”. Este programa teria como objetivo “tratar de reduzir as tensões exacerbadas pela ignorância, a inveja e a incompreensão” e “aumentar a maturidade do juízo e a estabilidade da determinação nos Estados Unidos e no estrangeiro”. Hoffman organiza uma equipe dedicada a promover esta ideia de “condições para a paz”. Junto a ele se encontra Rowan Gaither, mas também Milton Katz, seu ex-assistente na administração do Plano Marshall (ECA) e Robert M. Hutchins da Universidade de Chicago. A partir de 1º de janeiro de 1952 a equipe é reforçada por outro consultor da ECA, Richard M. Bissell Jr. Em 15 de julho de 1952, o orçamento dos programas internacionais da Fundação Ford se aproxima dos 13,8 milhões de dólares, isto é, a metade da soma destinada aos programas nacionais.
RICHARD BISSEL JR.
Em março de 1952, Richard M. Bissell escreve um texto de dezesseis páginas intitulado “Criar as Condições para a Paz”, em que fixa a linha do próximo programa. Segundo o documento, “o objetivo da Fundação deve ser contribuir para a criação de um contexto no qual seja possível para o Ocidente, graças a nova posição de força militar que está levando a cabo, negociar uma paz justa e honrada com o Leste”.
Nesse contexto, Hoffman recorre ao ex- secretário adjunto de Guerra, John J. McCloy (que havia passado a ser presidente do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento, antecessor do Banco Mundial) que se une à Fundação com um dos seus colaboradores: Shepard Stone.
Desde o verão de 1952 Hoffman se compromete junto a Dwight D. Eisenhower, candidato à eleição presidencial, esperando obter o posto de secretário de Estado na nova administração. Uma equipe da Fundação, sob a direção de Shepard Stone, escreve com diligência o programa do candidato republicano, trabalhando habilmente as suscetibilidades dos democratas.
Fracassa a tentativa de aliança e, desde sua entrada na Casa Branca, Eisenhower nomeia John Foster Dulles ao posto de secretário de Estado. Seu irmão, Allen Dulles, fica à frente da CIA onde adota uma posição muito dura em relação a URSS, desenvolvendo a estratégia do “rollback” na Europa Central.
Estas nomeações são uma nova camuflagem para os projetos de Hoffman, Kennan, Stone, McCloy e Milton Katz, que continuam multiplicando os contatos com intelectuais liberais e especialistas em questões internacionais para conduzir uma estratégia mais diplomática em relação à URSS. Durante estes encontros surge a ideia de que os países não alinhados podiam constituir um bom terreno para projetos pilotos elaborados pela Fundação.
Segundo os arquivos da correspondência entre os diferentes dirigentes da Fundação, John J. McCloy se perguntava então se “o trabalho que faziam não era mais difícil (...) que governar a Alemanha ou tratar de estabelecer uma comunidade européia”.
Ao final, os contatos realizados pelo grupo permitem aos dirigentes da Fundação considerá-la um “elemento de direção estimulante” para repensar a relação soviético-norte-americana, segundo informe final de McCloy e Stone.
Segundo este documento, a Europa Ocidental seria uma região chave cuja base institucional deveria ser fortalecida e onde a Fundação Ford “poderia patrocinar de forma útil a criação de uma instituição ou uma série de instituições dedicadas ao estudo dos problemas da comunidade européia”. Este projeto se intitula Programa Condições para a Paz. Se cria um comitê consultivo presidido por McCloy, em que Shepard Stone ocupa o posto de diretor.
Um dos seus objetivos é elaborar um método que permita “obter o apoio dos socialistas da Europa para a paz internacional”. Para tanto, a Fundação deve “considerar a ideia de reunir os pensadores socialistas avançados destes países, homens com prestígio no seio de seus próprios partidos, estudar o problema da coexistência e propor soluções”.
O programa suscita as ambições pessoais. Ao término das lutas de influência, se põe abaixo a jurisdição do Council on Foreign Relations (CFR) e Shepard Stone se converte em um elemento chave na qualidade de chefe da Divisão para os Assuntos Europeus e Internacionais da Fundação Ford.
Seja como for, a Fundação é uma ferramenta que deseja utilizar cada departamento ministerial. Desde 5 de maio de 1951, Hans Speier, da Rand Corporation, envia um memorando a Rowan Gaither em que revela que o Departamento de Estado e o Alto Comissionado Civil na Alemanha (HICOG) querem dissimular seu apoio a organizações na Alemanha Ocidental para que deixem de aparecer como submetidas a Washington. Para tanto, junto com a CIA, tratam de encontrar os meios para fazer chegar os fundos indiretamente.
PROJETOS
Em 20 de março de 1952, Milton Katz faz circular um memorando dentro da direção da Fundação em que recorda a especial importância da Europa para a diplomacia norte-americana. Segundo ele, a Europa só pode ser considerada “de forma construtiva se é membro da comunidade atlântica”. Nesse sentido, é importante contribuir para a liberação “dos grandes sindicatos franceses e italianos das mãos do comunismo”.
Katz enumera então uma série de projetos da Fundação Ford como “a instauração do equivalente do CDE (Comitê para o Desenvolvimento Econômico) para a Europa Continental. Termina com uma lista de personalidades que poderiam difundir a ação da Fundação: Jean Monnet, Oliver Franks, Hugh Gaitskell, Geoffrey Crowther, Robert Marjolin, Dirk Stikker y Dag Hammarskjöld.
Em maio de 1953 Rowan Gaither redige um memorando em que refere-se a um novo princípio: a Fundação deve evitar “o que seja um prolongamento ou repetição de ações efetivas de governo ou outras agências”. E, prossegue, “algumas das mais importantes oportunidades da Fundação (...) podem residir no fato de completar, estimular e fazer melhores as atividades de outros, especialmente as do governo”. O vínculo Governo norte-americano/Fundação Ford encontra aqui seu modus operandi.
“LIBERDADE DA CULTURA”
Com o final do maccartismo e o início da coexistência pacífica, se atenuam as querelas em Washington. A Ford não se apresenta como uma alternativa à CIA, mas como sua associada. Richard Bissell Jr deixa a Fundação para assumir cargo na direção de operação do stay-behind, enquanto a Ford assiste a CIA em várias grandes operações, a substitui no financiamento do Congresso para a Liberdade da Cultura e confia um estudo sobre o fracasso do tratado da Comunidade Européia de Defesa na França a David Lerner e a Raymond Aron, figura essencial do Congresso. Financia a orquestra Hungarica Philarmonica, composta por músicos obrigados a exilar-se devido ao stalinismo e que a CIA quer erigir como símbolo do mundo livre.
Financia igualmente o American Committee on United Europe (ACUE), uma fachada da CIA encarregada de favorecer a construção de uma Europa Federal conforme os interesses de Washington. O ACUE é presidido pelo ex-diretor dos serviços secretos durante a Guerra Mundial e seu vice-presidente é fundador da CIA.
A ação da Ford junto ao Congresso para a Liberdade da Cultura é possível, explica Grémion, pela proximidade entre os atores que formam parte de ambas entidades. Como o Congresso, a Ford está composta por “liberais” (no sentido norte-americano do termo), quer dizer, pela esquerda não comunista. “Ferramenta de uma diplomacia não governamental, o objetivo de seus dirigentes [no campo da arte] é dar uma imagem diferente da cultura norte-americana, separada da frequente imagem de cultura popular de massas”.
Nesse sentido, “a Ford situa assim sua ação desde o início no marco de uma prática de mecenato ilustrado”. Finalmente, está orientada também no desenvolvimento das ciências sociais: Rowan Gaither estima que, algum dia, estas permitirão obter resultados tão brilhantes no campo social como a engenharia no campo da técnica. A Ford financia com muita prioridade as ciências sociais, antes que as humanas e a medicina. Multiplica igualmente os intercâmbios universitários e acadêmicos, assim como as criações institucionais: financia o Centro de Sociologia Europeia de Raymond Aron e a rede de planificadores Futuribles, de Bertrand de Jouvenel.
Sua presença é tão discreta que, segundo um memorando redigido por Shepard Stone depois de uma viagem a Europa em 1954, a Fundação tem grande reconhecimento na Europa “inclusive nos círculos de extrema esquerda do Partido Trabalhista britânico, o SPD alemão e entre numerosos intelectuais esquerdistas na França”. A admiração é recíproca: Shepard Stone sente grande atração pela cultura européia, a que se opõe a cultura popular norte-americana, e sente-se próximo dos intelectuais do Congresso que, logo que critiquem o comunismo, “valorizam as virtudes da liberdade individual e de uma sociedade livre”. Assim, financia revistas próximas ao Congresso como Encounter, Preuves e Forum.
Depois de vários meses de conflitos internos, Shepard Stone obtém a direção da totalidade do programa europeu da Ford em meados de 1956. A atividade da Ford se amplia. Stone reivindica cinco milhões de dólares suplementares de orçamento somente para o programa europeu. Este dinheiro permite ajudar os refugiados procedentes da Hungria ou Polônia e instalar estruturas para acolhê-los. A Fundação Ford organiza igualmente programas de formação e estudo para cientistas procedentes do Pacto de Varsóvia, enviados para os Estados Unidos e a Europa Ocidental.
Ao mesmo tempo, se lançam no Japão programas de promoção de língua inglesa, estudos norte-americanos e contatos entre Japão e Europa. A diplomacia filantrópica da Ford se torna mundial. Em todas as partes do mundo se encarrega de impulsionar a cultura estadunidense e ganhar para sua causa os Não Alinhados. Na África, a ameaça de um alinhamento com Moscou dos países recentemente independentes motiva numerosos programas de ajuda nessa direção, especialmente na Argélia. Monta-se igualmente um programa agrícola na Índia com a ajuda de investidores europeus a quem Shepard Stone estimulou a criar fundações no estilo da Ford.
UNIVERSIDADES
Em nível universitário, a Fundação Ford financia o St Antony’s College de Oxford, especializado em Humanidades, em 1959. O Centro Europeu de Investigação Nuclear (CERN) também recebe subvenções a partir de 1956, assim como o instituto do físico nuclear dinamarquês Niels Bohr. Assim, com a aprovação da CIA, este pôde levar à Dinamarca a delegação de cientistas polacos, soviéticos e inclusive chineses, em virtude, oficialmente, do “diálogo científico”. Neste mesmo sentido, a própria universidade de Oxford recebe uma subvenção de um milhão de dólares em 1958, assim como o Churchill College de Cambridge.
Na França, a Maison des sciences de l’homme (Casa das Ciências do Homem), dirigida por Gaston Berger, recebe um milhão de dólares em 1959 para a criação de um centro de investigação em ciências sociais defendido por professores universitários como Fernand Braudel.
A revelação, em 1966 e 1967, do financiamento do Congresso pela Liberdade da Cultura por parte da CIA, tem como consequência o descrédito da Ford. Se espalha a ideia de um vínculo entre a Ford e os serviços secretos norte-americanos. Mais ainda, é o conjunto das atividades pretendidamente filantrópicas realizadas pela Fundação na Europa as que são vistas através de um novo olhar: não se trata acaso de uma formidável operação de ingerência cultural estadunidense?
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