Wednesday, February 27, 2008

Liminar sobre Lei de Imprensa curva-se à autocracia da mídia

Ayres de Britto afirma que mídia golpista e democracia são “irmãs siamesas” e que carta branca para a calúnia é o ápice da liberdade

O ministro Ayres de Britto, do STF, concedeu liminar parcial ao pedido, transportado pelo deputado Miro Teixeira, de suspender a Lei de Imprensa. Pela decisão, estão suspensos os artigos que puniam os ataques à honra alheia e aqueles que estabeleciam limitações ao capital, à propriedade e à orientação estrangeiras na imprensa dentro do país. Tanto Miro quanto Britto argumentaram com o fato de que a Lei de Imprensa atual foi elaborada durante a ditadura. No entanto, com uma única exceção, todos os dispositivos suspensos fazem parte das leis de imprensa de todos os países civilizados.

Segundo Britto, “imprensa e Democracia, na vigente ordem constitucional brasileira, são irmãs siamesas. Uma a dizer para a outra, solene e agradecidamente, ‘eu sou quem sou para serdes vós quem sois’”.

Muito interessante a citação literária escolhida por Britto, o último verso do “Soneto da Mudança”, de Vicente de Carvalho. Resta saber qual a verdadeira posição do ministro em relação à imprensa, pois o soneto nada tem a ver com uma relação entre irmãs: “Não me culpeis a mim de amar-vos tanto/ Mas a vós mesma, e à vossa formosura:/ Que, se vos aborrece, me tortura/ Ver-me cativo assim do vosso encanto.// Enfadai-vos. Parece-vos que, em quanto/ Meu amor se lastima, vos censura:/ Mas sendo vós comigo áspera e dura/ Que eu por mim brade aos céus não causa espanto.// Se me quereis diverso do que agora/ Eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois/ Ido o rigor que em vosso peito mora,// A mudança será para nós dois:/ E então podereis ver, minha senhora,/ Que eu sou quem sou por serdes vós quem sois”.

Britto pode ser o que é porque a imprensa é o que é, mas os monopólios de mídia não são “irmãs” da democracia, e, sim, seriais-killers de qualquer átomo democrático. Porém, Britto não somente diz que a mídia é irmã siamesa da democracia, como, pelo visto, propõe o amancebamento com ela.

MONOPÓLIOS

O que não muda o fato de que a maior restrição à liberdade que existe no país consiste nos latifúndios de comunicação, com a maioria esmagadora dos meios de comunicação nas mãos de menos de meia dúzia de monopólios. Porém, segundo Britto, em se tratando da imprensa, “o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja” (sic).

Para ele, a impunidade da difamação – o paraíso do Dr. Goebbels - é o ápice da liberdade. Não lhe parece uma aberração que, com isso, quase todos os brasileiros sejam privados da liberdade de expressão...

Além disso, é evidente que nada na sociedade pode não ter limite algum. Qualquer cidadão sabe que não pode mentir sobre a honra dos outros e que, se fizer isso, arrisca-se a parar na cadeia. Porém, Britto acha que deve haver uma exceção: os jornais, canais de TV, rádios, revistas, etc. É o que significa a expressão “o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja”. Ele não está falando de qualquer um. Se estivesse, estaria pregando o fim da sociedade humana – e do Direito. Ele está se referindo à mídia, está pregando que, para ela, e só para ela, não haja qualquer limite.
Já dizia Balzac que “as redações de jornal são os lupanares do pensamento”. Há, leitor, algumas exceções, entre elas este combativo periódico que no momento você está lendo. Porém, Britto está propugnando que o ápice da liberdade seja o tacão desses bordéis sobre a coletividade.

Tanto é verdade que ele se esmerou em suspender na Lei de Imprensa tudo o que diz respeito à limitação ao domínio estrangeiro. Quem acha que ter a imprensa dentro do país controlada pelo Murdoch e outros gangsters é uma garantia para a democracia brasileira? Portanto, não foi para aumentar a liberdade de expressão que Britto expediu o seu malfadado veredicto. Até ele sabe que foi, única e tão somente, para, ao arrepio do Direito, bajular a mídia daqui e de fora.

O deputado Miro Teixeira, que, acumpliciado com o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, impediu a CPI da TVA/Telefónica, ou seja, impediu a investigação de uma falcatrua despudorada - a ilegal venda, pelo grupo da “Veja”, da TVA à Telefónica - fez outra vez o triste papel de office-boy desses monopólios. Agora, prestou serviço à “Folha de S. Paulo”, que berrava como uma arara histérica pelos processos movidos contra ela pela Igreja Universal.

ILEGAL

O que é, também, um dos maiores escândalos da liminar de Britto: para livrar um monopólio das conseqüências de uma acusação sem provas, ele, objetivamente, colocou o STF a serviço dele, e, em poucas horas, emitiu uma liminar tão ilegal que ele mesmo preocupou-se duas vezes, numa exígua sentença, em dizer que não estava desrespeitando a lei. O problema é que, como relator, ele só poderia conceder uma liminar em caso de “extrema urgência ou perigo de lesão grave” (Lei 9.882/99, art. 5). E não havia qualquer extrema urgência, nem perigo de lesão grave. O que havia era a histeria da “Folha”, esperneando por não poder dizer “o que quer que seja”, sem apresentar prova de coisa alguma.

Há algum tempo, Britto professou, em considerações jurídicas, que “o Judiciário não governa, mas ele governa quem governa”, tese que, provavelmente, faria Ruy Barbosa, Clóvis Bevilácqua, Nelson Hungria, e outros próceres do Direito, abandonarem sua pacatez e aderirem ao chamado desforço físico.

Há dois anos, o mesmo Britto defendeu, em meio à indignação de Sepúlveda Pertence e até de Nelson Jobim – nesse caso, insuspeito – que um deputado podia ser condenado à cassação por acusações à sua atuação fora do mandato, como ministro de Estado. Reparemos que todo mundo sabia da inexistência de uma única prova contra José Dirceu. E, se alguém disser que essa última questão nada tem a ver com a primeira, lembraremos Ruy Barbosa, que há muito execrou tal formalismo (“não há salvação para o juiz covarde”). A hermenêutica de Britto serviu somente para uma coisa - cassar o mandato de José Dirceu.

Nos dois casos, há uma coerência – a coerência da subserviência. É evidente que não é função do Judiciário – nem é possível a ele - governar o governo. A função do Judiciário é garantir a aplicação da lei e punir as transgressões a ela. Mas, certamente, a mídia golpista quer usar o Judiciário, não para governar o governo Lula, mas para inviabilizá-lo e desmoralizá-lo. No entanto, segundo Britto, “nós queremos levantar tapetes, abrir portas, devassar os recintos. Isso é típico da democracia”.

Pois nós aqui só queremos justiça. E que os juízes ajam como juízes, e não como megafones da “Veja”. Democracia não é chicana, nem exercício de voyeurismo, mas o respeito à vontade do povo. Naturalmente, essas tolices ditas pelo insigne bardo e jurista são apenas versões que a mídia passa para os tolos a quem quer usar.

A questão é que há uma mídia que quer submeter a Justiça para que se torne o contrário do que deve ser – mera acobertadora de seus crimes. É sintomático que Britto – pois não é o Judiciário que o faz - ambicione “governar o governo”. Tal ambição não é parte integrante do Direito. É apenas a expressão invertida e algo confusa da sensação de que algo ou alguém estranho governa as suas decisões. Não é necessário comentar sobre porque ele atribui esse sentimento, que é só seu, ao Judiciário.

CARLOS LOPES
Hora do Povo

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